Na última quinta-feira (19), a Justiça Federal julgou ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, garantindo à Comunidade Quilombola 'Ilha de São Vicente' o direito à posse da terra em que vive, no município de Araguatins, norte do Tocantins. Ao todo, 48 famílias aguardavam o julgamento da ação judicial que definiria seu direito de permanecer ou não na terra em disputa.
A ré da ação civil pública alegava ser proprietária de uma área de 110 alqueires da Ilha de São Vicente, que teria sido comprada, ainda no ano de 1985, por seu marido, atualmente falecido. Ela afirmava que, em 1997, seu esposo permitiu que Salvador Batista Barros, um senhor que, segundo ela, passava por dificuldades financeiras, "plantasse uma roça em pequena parte da propriedade". Com o passar dos anos, Salvador teria levado sua família e outros parentes para o local.
Em ação entre particulares que tramitou anteriormente na Justiça Estadual, a suposta proprietária havia obtido um título judicial em seu favor, o que culminou na ordem de reintegração na posse de parcela da "Ilha de São Vicente" ocupada por Salvador Batista Barros e seus familiares.
No entanto, com o reconhecimento da Comunidade Quilombola "Ilha de São Vicente" pela Fundação dos Palmares no ano de 2010, iniciou-se a luta dos remanescentes de quilombolas, liderados por Salvador Batista Barros, pelo direito de posse sobre a área, o que levou o MPF a mover a ação civil pública recentemente julgada.  
Ao julgar a demanda, a juíza federal Roseli Ribeiro, titular da 1a Vara Federal de Araguaína (TO), garantiu a permanência da comunidade na terra, com base na norma do art. 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), por entender que a área disputada é ocupada por descendentes de ex-escravos, a quem a ilha fora doada após a abolição da escravatura.
A magistrada explica na sentença que "os quilombolas são descendentes de africanos escravizados, que externam consciência étnica, vinculada às manifestações socioculturais de seus antepassados e vivem em comunidade, sobrevivendo da agricultura de subsistência".
Ela prossegue registrando que, "para melhor percepção da intensidade do vínculo existente entre essas comunidades tradicionais e a terra que ocupam, é necessário compreender que o termo quilombo foi cunhado, historicamente, para designar o local em que os escravos fugidos se refugiavam e resistiam à escravidão".
Também anota a juíza que, "após a abolição oficial da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, pela Lei Áurea, o vocábulo quilombo passou a designar, ainda, o lugar onde os ex-escravos passaram a viver em comunidade, como forma de enfrentar as muitas barreiras que se seguiram com o fim da escravidão, inferindo-se que o substantivo, a partir de então, teve a sua conotação semântica ampliada, não necessariamente ligada ao reduto dos negros fugitivos".
Ao analisar os fatos, a magistrada considerou relatório antropológico elaborado pela antropóloga da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Rita de Cássia Domingues Lopes, e uma equipe multidisciplinar do INCRA, que aponta a doação da área em questão a ex-escravos após a abolição da escravatura em 1888. A antropóloga relata que, durante o trabalho de campo, foi constatado que Salvador Batista Barros e seus irmãos, bisnetos dos ex-escravos agraciados com a porção de terra, nasceram e foram criados na "Ilha de São Vicente".
O estudo realizado pela pesquisadora da UFT cita trechos da obra literária "Uma Dívida Resgatada com Seres Humanos", em que o autor Leônidas Gonçalves Duarte relata que, "em 1869, seu avô Vicente Bernardino Gomes, fundador da cidade de Araguatins-TO, recebeu oito escravos como pagamento de uma dívida, dentre eles, Julião Barros, Serafina Benedita Batista e seu filho, Henrique Julião Barros, respectivamente, bisavô, bisavó e avô de Salvador Batista Barros, patriarca da comunidade quilombola até o seu óbito, no ano de 2017".
Segundo a juíza, ficou "fartamente comprovado que os ancestrais de Salvador Batista Barros, de seus irmãos e de seus descendentes são os ex-escravos Julião Barros e Serafina Benedita Batista, precursores do quilombo da 'Ilha de São Vicente'".
A magistrada registrou não ser exigível a comprovação de que a comunidade quilombola estivesse na posse da terra por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, pois "impor-se a comprovação do requisito objetivo temporal a uma minoria étnica que durante anos não foi reconhecida fatalmente inviabilizaria o exercício do direito fundamental dessa coletividade, além de reforçar o comportamento estatal omissivo que imperou por exatos 100 anos desde a abolição da escravatura".
"Os membros da comunidade negra ocupante da 'Ilha de São Vicente', antigo quilombo, são descendentes dos ex-escravos donatários do imóvel e conservam identidade étnica ligada a esse território, merecendo a proteção possessória postulada", concluiu a juíza federal Roseli Ribeiro.