Carlos Gaby
Na última sexta-feira, 8 de março, um ciclo completou-se na vida do engenheiro e médico ítalo-brasileiro Vittorio Grignani, quarenta e seis anos depois do sonho aventureiro de varar as matas do maior país da América do Sul para erguer, em pleno sertão do Maranhão, um templo para cristãos e índios, tarefa que custou-lhe dois anos de trabalho duro.
No acanhado prédio da Câmara de Vereadores, sob o testemunho de poucos moradores, a pequena Montes Altos, com seus poucos mais de 10 mil habitantes, não tinha ideia do momento histórico. Ali, por volta de meio-dia, tempo nublado e calor amazônico, Vittorio recebeu o diploma, em solenidade simples, do Título de Cidadão Montealtense. Foi uma viagem no tempo, e ele, sempre impassível, simpático e alheio às homenagens, emocionou-se.
Na véspera, um acontecimento, no primeiro momento insólito e depois marcante, o deixara impressionado. Era tarde de quinta-feira, 7 de março. Um emissário batera na porta de sua casa, na Nova Imperatriz. Com um buquê de flores e uma carta, tentava confirmar se aquele era mesmo o endereço do destinatário. Titubeando, o médico confirmou que sim e recebeu a encomenda. Evidentemente, ele era o destinatário. As flores, achou-as belas, com seu espírito de artista, mas o conteúdo da carta o fez desmoronar. Era uma homenagem das filhas, Paola e Alice, que moram na Itália. O episódio martelou sua cabeça e o fez confessar aos amigos, sem dizer palavras, que tudo tinha valido a pena.
Cabana de Deus
O trabalho, a luta e a dedicação de Vittorio à pequena cidade que mora nas suas recordações começou em 1966. Naquele ano, conheceu o frade capuchinho dom Aristide Arioli, missionário que pregava a sertanejos e índios nas terras de Montes Altos. O religioso já tinha trabalhos publicados sobre os índios Canela, de Barra do Corda, e os Krikatis, de Montes Altos. Os dois selaram amizade e acordaram o trabalho. O desafio de Vittorio era projetar e erguer a igreja da cidade, que havia sido construída precariamente a mando do frei Epifânio da Abadia. Arrasada, a construção, logo depois, foi abaixo para dar lugar ao novo templo.
A viagem ao Brasil é uma epopeia à parte. Para o jovem italiano, então com 26 anos, forçado a engolir a visão eurocentrista do Velho Mundo, empreender uma jornada ao exótico Brasil, cruzando suas fronteiras até às bordas da Amazônia, era como desbravar um jardim misterioso e belo, com seus tipos inocentes, traços fortes marcados pelo sol, costumes tão distantes do que acreditava ser “civilizado”.
No fim de novembro de 1966, os dois deixaram Roma “sob uma chuva fria e insistente” e desembarcaram no Recife. “As cores vivas” e o clima tropical o deixaram impressionado. Da capital pernambucana para Belém, também de avião, e dali para Imperatriz, desta vez de ônibus, trajeto por uma Belém-Brasília ainda sem asfalto. Era tudo novo e magnífico, a imensidão da floresta, os desafios da viagem, os cheiros, um mundo rústico e belo, livre e sem fronteiras.
De Imperatriz para Montes Altos, um dia batido de viagem, feita em pau-de-arara, a expectativa do desconhecido, as experiências que o aguardavam.
A ideia de Frei Aristides era edificar uma igreja diferente das outras, que representasse os dois polos humanos da região: sertanejos e índios. Decidiu-se pelo projeto da Cabana de Deus, ampla, aberta, simples, com teto e colunas e madeiras nobres da floresta, como aroeira e ipê.
A construção demorou dois anos. O primeiro foi dedicado à limpeza do terreno e a fundação do prédio, a escolha da madeira, o sacrifício de talhar e tratar as peças das tesouras que sustentam o esqueleto do teto. Esse trabalho, Vittorio comandou pessoalmente, ele mesmo, com suas mãos, contando com a ajuda de “uma faz tudo” e de um marceneiro de Imperatriz – posteriormente de um pedreiro, que ergueu as paredes laterais da nave principal, da fachada e as da parte externa que cercam o conjunto principal.
Ao fim de dois anos, o sacrifício havia sido coroado. Com seu teto em forma de “V” invertido, coberto por tábuas de madeira nobre e sustentado por colunas também de madeira, a igreja é exemplar único no mundo. É dedicada a Nossa Senhora de Santana.
O triunfo foi celebrado de maneira simples – ele e os poucos companheiros tomando cervejas compradas numa pequena quitanda.
Mais que o trabalho como engenheiro, o contato com a população nativa fez o jovem Vittorio se apaixonar pelo Brasil. Aprendeu a andar a cavalo, participava de serenatas, aprofundou amizades. Ao receber o título de cidadania, ele lembrou um episódio: certo final de tarde, quando retornava da quinta, com o cabresto em uma das mãos, o forro pendurado no braço, cruzou com dois senhores, que conversavam distraidamente. Ao passar por eles, a pouca distância, ouviu o comentário de um deles: “É incrível como esse jovem se adaptou tão rapidamente à vida aqui”. Para Vittorio, o comentário é o maior reconhecimento que já recebeu pelo merecimento do título.
Novo desafio
Enquanto trabalhava na igreja, Vittorio foi obrigado a desenvolver outro talento. Não havia hospital, nem posto médico, muito menos médico, em Montes Altos – quem procurasse ajuda, que se deslocasse a Imperatriz, cerca de 75 quilômetros de distância.
A medicina tornou-se logo uma paixão. Para tratar dos doentes, recorria a livros de medicina missionária, de primeiros socorros e a uma enciclopédia médica trazida da Itália.
Terminada a igreja, Vittorio confessou a Frei Aristide que iria cursar medicina na Itália. Deste, ouviu um desafio, em tom provocativo: “Se você se formar em medicina, construirei um hospital para quando voltar da Itália”. Anos depois, os dois se reencontraram e o pacto foi honrado.
Vittorio se formou em medicina na Universidade Italiana de Pavia e em 1976 retornou a Montes Altos. Trabalhou com o médico Jairo Casanova, de quem se tornou grande amigo. Nesse tempo, nas horas de descanso, pintava quadros, destacando como elementos os índios e as paisagens sertanejas.
Também nessa época, passou a atender em Imperatriz, no Hospital Santa Tereza, e selou amizade com o colega Luiz Carlos Noleto, ginecologista e obstetra.
Em 1979, Vittorio casa-se com Lúcia, com quem tem duas filhas, Paola e Alice, nascidas em Imperatriz. Os partos foram feitos pelo amigo Luiz Carlos.
Vittorio Ernesto Grignani nasceu no dia 10 de janeiro de 1940, em Melegnano, província de Milão, capital da Lombardia. É um dos cinco filhos de Gaetano Brignani, que foi administrador do Hospital Predabissi de Melegnano, e de Adele Dezza, dona de casa. Atualmente, mora em Melegnano, mas tem casa em Imperatriz e sempre visita Montes Altos para rever amigos, como o também ítalo-brasileiro Fausto, e se emocionar um pouco.
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