Vestida numa túnica branca, a quebradeira de coco aposentada, Maria Carneiro Arrais de Carvalho, recebeu toda a comunidade de seu povoado num barracão colorido com bandeirolas no quintal de casa para celebrar a data mais importante do ano para a sua família, 27 de setembro, dia de Cosme e Damião, figuras religiosas que representam a filantropia no cuidado com os enfermos e o milagroso poder da cura.
A festa, iniciada há 20 anos, é uma promessa feita por dona Darci, como é carinhosamente conhecida no povoado Olho D'Agua do Coco, zona rural de Sítio Novo do Tocantins. Ela conta que após sete meses sofrendo de problemas gástricos que debilitaram seu organismo, e sem diagnóstico esclarecido pela medicina dos grandes centros que percorreu em busca de cura, foi desenganada pela equipe médica e teria pouco tempo de vida.
"Minha família já tinha gasto tudo que tínhamos com médicos aqui da região e até de Brasília. Na volta pra casa, deitada no colo do meu pai, tive uma visão de um santo em cima de um morro com muita gente e muita criança em volta, aí orei silenciosamente que se eu sobrevivesse, iria brincar com as crianças, e assim fiz", conta a anfitriã com olhos marejados de emoção ao ver mais de cem pessoas reunidas na festa deste ano.
"Fui muito criticada, minha família não acreditava na minha história. A comunidade me discriminava, proibia os filhos de virem brincar porque diziam que eu era terecozeira. Sofri muito, chorei e pedi pra Deus que mostrasse se minha atitude era certa ou errada. Nessa noite sonhei com Cosme e Damião dentro de um barco, rodeados de crianças e a mesma imagem que vi quando estava doente. Entendi que não deveria parar".
A brincadeira pequena foi vencendo o preconceito, as barreiras econômicas, ganhando apoiadores, e hoje é referência na cultura da comunidade.
"Quando comecei não tinha recursos. Mas como a missão é minha, nunca pedi nada a ninguém e Deus sempre providenciou através dos amigos. Meu coração se enche de alegria com toda essa gente aqui. Esse ano enfrentei muita dificuldade porque o dinheiro que guardei pra festa foi roubado. Mas com a ajuda de todos e do pessoal da escola, nós conseguimos mais uma vez".
Valorização - Pela importância da festa para a identidade de Olho D'água, independente de credo, em todo 27 de setembro vizinhos se voluntariam para auxiliar nos preparativos coordenados por dona Darci. São homens, mulheres, jovens e muitas crianças, trabalhando em ritmo colaborativo para garantir as brincadeiras e o delicioso almoço servido ao final.
Em 2019 a equipe da Escola Estadual Raimundo Nonato Leite, que funciona no povoado, incluiu a festa no calendário letivo. "Um dos pilares de nosso projeto político pedagógico é o respeito às diferenças, incentivo e resgate das tradições locais, e a inclusão social", ressalta o professor Vadilson Almeida, coordenador do projeto de pesquisa sobre a historiografia oral dos trabalhadores rurais de Olho D'Agua com base na festa das divindades Cosme e Damião, que visa refletir sobre a influência das tradições na formação cidadã dos alunos, que resultou na produção de cordeis sobre a história da ilustre moradora.
Mãe do pequeno Victor Hugo, Graziela Ribeiro, tem 18 anos e estuda a 3° série do Ensino Médio na escola Nonato Leite. Ela lembra que já brincou muito na festa de Dona Darci: "Era muito divertido, eu pulava corda e ganhava brindes. Agora meu filho também vai participar comigo, porque já é sagrado pro nosso povo aproveitar esse dia reunido com todo mundo e ajudar dona Darci a cumprir sua missão". (Kayla Pachêco)
Publicado em Regional na Edição Nº 16475
Projeto Cosme e Damião reúne tradição e aprendizado em comunidade da zona rural de Sítio Novo-TO
Promessa religiosa hoje é referência em inclusão e cooperativismo
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