Rio de Janeiro - No final dos anos 1940, já consagrado como o Rei do Baião, Luiz Gonzaga criou uma verdadeira corte em torno do ritmo. A rainha era a cantora Carmélia Alves, que morreu em novembro passado, aos 89 anos, o príncipe, o cantor Luiz Vieira e a princesa, a cantora Claudette Soares. O culto Humberto Teixeira, também advogado, era o bacharel do baião, e acabou se elegendo deputado federal, em 1950. Na Câmara dos Deputados, ele foi autor de leis em favor da difusão da música brasileira no exterior.
O baião foi beneficiário dessa difusão internacional. Nos anos 1950, impulsionado pelo sucesso de Muié Rendeira, canção do filme brasileiro O Cangaceiro, que recebeu menção honrosa no Festival de Cannes de 1953, o ritmo nordestino foi largamente usado em trilhas sonoras pelo cinema italiano. E até estrangeiros compunham baião. A atriz Silvana Mangano, por exemplo, interpretou uma dessas músicas, de autoria de dois italianos, no filme Arroz Amargo.
No acervo sonoro da Rádio Nacional há preciosidades como a série No Mundo do Baião, apresentada em 1950 pelo programa Cancioneiro Royal. Com produção de Humberto Teixeira e Zé Dantas e apresentação do radialista Paulo Roberto, a série tinha como estrela Luiz Gonzaga.
Além da temática rural e tipicamente nordestina, havia os baiões “urbanos”, como Oxe, Tá Fartando Coisa em Mim, composto por Teixeira para o cantor Ivon Curi, e a chegada do ritmo ao carnaval carioca, com Bate o Bumbo, sucesso na voz de Emilinha Borba.
O acordeom, antes mais vinculado à música rural, conquista o público urbano e se torna o instrumento com que muitos jovens da cidade entram no meio musical. Uma dessas jovens era Adelaide Chiozzo, que chega à Rádio Nacional em 1951, aos 15 anos de idade.
“Quando ele me viu tocar, disse: ‘Menina, você não vai aguentar muito tempo isso aí’, e eu perguntei: ‘Por que, Luiz?’” Ele me respondeu: ‘Porque todo sanfoneiro e acordeonista morre da coluna’”, lembra Adelaide sobre sua convivência com Luiz Gonzaga nos estúdios da Nacional. A cantora revela ter sido a inspiradora de uma música do sanfoneiro Cintura Fina.
“Ô, menina, eu vou fazer uma música pra você”, dizia Gonzaga, que, segundo Adelaide, vivia fazendo gracejos sobre sua cintura. “Olha, você quando sair com a Adelaide não vira a esquina depressa não, porque ela pode quebrar no meio. Ela tem uma cintura fina demais...”. Pouco tempo depois, ele gravou a música: “Vem cá, cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá, meu coração”.Rio de Janeiro - Na trajetória que o levou à consagração nacional, um episódio é revelador do papel de Luiz Gonzaga em prol da cultura nordestina. Mais importante emissora da América Latina na época, a Rádio Nacional exigia que os cantores e músicos de seu elenco vestissem traje a rigor em suas apresentações no auditório.
Com o sanfoneiro não foi diferente. Quando começou a fazer sucesso, era de smoking que ele se apresentava. Certo dia, porém, ele descobriu que havia uma exceção: o também sanfoneiro Pedro Raimundo, gaúcho que fazia parte dos quadros da emissora, se apresentava usando a bombacha típica dos pampas.
Gonzaga reivindicou o direito de usar um figurino que marcasse sua identidade nordestina, a exemplo do que o colega fazia com o Rio Grande do Sul. Ele apareceu na rádio com a típica vestimenta de vaqueiro da região, mas foi impedido de atuar pelo então diretor artístico da emissora, Floriano Faissal.
“Marginal, não. Roupa de cangaceiro aqui não”, teria dito Faissal. Em meados dos anos 1940, o traje típico do sertanejo nordestino ainda era associado ao bando de Lampião, morto pela polícia poucos anos antes, em 1938.
Contemporâneo de Luiz Gonzaga na Rádio Nacional, o veterano radioator e apresentador Gerdal dos Santos, que até hoje integra os quadros da emissora, confirma o preconceito. “Existia, de fato, naquela época, na cultura urbana do Rio, uma valorização do bolero, do foxtrote, das músicas que faziam a trilha sonora dos filmes americanos e, por conta disto, um certo preconceito com relação à música nordestina. E isto se estendia à vestimenta”, diz Gerdal.
Luiz Gonzaga foi aperfeiçoando o traje, que usava em suas apresentações fora da rádio, até que conseguiu impor na emissora sua imagem e o figurino. A partir daí, pôde trabalhar com o chapéu de couro e as demais peças que haveriam de ser sua marca por décadas.
Publicado em Regional na Edição Nº 14588
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