Se Juscelino Kubitschek não tivesse embarcado num Boeing 707 da Air France rumo ao Rio de Janeiro na noite de 4 de outubro de 1965, talvez o maior partido do Brasil de hoje não se chamasse PMDB. Para entender a relação entre dois fatos aparentemente tão incongruentes, é preciso conhecer uma história que neste mês completa 50 anos: a do Ato Institucional nº 2, que extinguiu os antigos partidos políticos brasileiros, substituindo-os por apenas dois: a Arena e o MDB.
No primeiro ano após o golpe de 1964, o governo do marechal Castello Branco se esforçava para manter uma fachada de democracia. Os partidos continuavam a existir — os três principais eram o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O Congresso continuava aberto, apesar das cassações de políticos, e havia até jornais de oposição ao governo, como a Última Hora e o Correio da Manhã. A eleição presidencial direta prevista para 1965 fora adiada para 1966, mas se mantiveram os pleitos para 11 dos 22 governos estaduais (na época, os calendários eleitorais dos estados não coincidiam).
As duas principais unidades da Federação em jogo na eleição eram Minas Gerais e Guanabara, governadas, respectivamente, por Magalhães Pinto e Carlos Lacerda, os dois maiores líderes civis do golpe e pré-candidatos da UDN à Presidência. A vitória de seus candidatos (Roberto Rezende, em Minas, e Carlos Flexa Ribeiro, na Guanabara) era vista como crucial para a “obra revolucionária”.
Aí entra Juscelino na história. Cassado em 1964, o ex-presidente estava vivendo em Paris, num exílio voluntário. À distância, JK indicou os candidatos do PSD em Minas e na Guanabara: em Minas, o empresário Sebastião Paes de Almeida, seu ex-ministro da Fazenda; na Guanabara, o marechal Henrique Teixeira Lott, líder da “esquerda” nas Forças Armadas e ex-candidato de Juscelino à Presidência em 1960 (derrotado por Jânio Quadros).
Temendo a vitória dos candidatos de JK, o regime agiu para inviabilizá-los. Pressionou o Tribunal Superior Eleitoral a impugnar as duas candidaturas — a de Paes de Almeida, sob pretexto de abuso de poder econômico numa eleição anterior, para a Câmara; e a de Lott, sob o argumento de que seu domicílio eleitoral era Teresópolis, no estado do Rio, ou seja, fora do território da Guanabara.
Carreata
Com a impugnação de Paes de Almeida e Lott no TSE, JK lançou mão de outras candidaturas que tinha na manga, dois velhos aliados: Israel Pinheiro, em Minas Gerais, e Negrão de Lima, na Guanabara. Sem argumentos para impugná-los, o regime teve que assistir, humilhado, à vitória de ambos, por ampla margem.
— Então Juscelino (erradamente, eu acho) pegou o primeiro avião em Paris e veio ao Brasil para comemorar — conta o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília. Foi recebido com festa no desembarque no Galeão e levado em carreata até a zona sul, onde a multidão o carregou nos ombros.
— Isso enfureceu a linha dura dos militares — lembra Fleischer.
A ala do governo que defendia um endurecimento do regime não engoliu o gesto de JK, interpretado como provocação. Cogitou-se impedir a posse de Israel e Negrão. Mas Castello Branco aferrou-se à promessa de empossar os eleitos, quem quer que fossem.
Os afilhados de JK tomaram posse, mas o preço foi alto. Em troca, Castello cedeu à linha dura e aceitou o fechamento do regime. Dez dias após as eleições, enviou ao Congresso uma proposta de emenda à Constituição que dava mais poderes ao Executivo. Ao ver que o Parlamento não aprovaria a PEC, o governo a trocou pelo segundo ato institucional, em 27 de outubro de 1965, três semanas depois da derrota eleitoral. O AI-2, como foi chamado — o primeiro ato institucional não era numerado, porque se imaginava que seria o único —, extinguia todos os partidos políticos e cancelava de vez a eleição presidencial de 1966.
Para formar novas agremiações, o AI-2 exigia reunir pelo menos 120 deputados e 20 senadores. Como na época o Senado tinha 66 membros (eram 22 os estados), matematicamente poderiam existir três partidos. Mas desde o início a ideia era que fossem apenas dois: um reunindo o bloco parlamentar de apoio ao governo e outro com o que restasse de “oposição consentida” à ditadura.
Os novos partidos não se formaram de imediato. Na Aliança Renovadora Nacional (Arena), o processo foi mais rápido. Quase toda a UDN, a maior parte do PSD e até alguns petebistas (sobretudo de Minas Gerais) migraram para o partido governista. O bipartidarismo forçado deu origem a brigas políticas em vários estados. Caciques do PSD e da UDN, ferrenhos adversários, foram obrigados a conviver no espaço do mesmo partido.
Costela do regime
Outro problema foi juntar 20 senadores e 120 deputados corajosos o bastante para formar um partido de oposição. A muito custo conseguiram-se reunir 151 deputados e 22 senadores para a obtenção do registro no TSE. O nome inicial de Ação Democrática Brasileira (ADB) foi rapidamente alterado para Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Só em 24 de março de 1966 o TSE concederia o registro aos dois novos partidos.
Nascido de uma costela do regime a que deveria se opor, o MDB custou a conquistar credibilidade. O eleitorado contrário à ditadura não enxergava nele um legítimo partido de oposição. Esmagado pela Arena nas eleições de 1966 e 1970, o MDB quase desapareceu. Foi salvo em 1974, quando o fim do “milagre econômico” levou a um voto de protesto que deu à oposição a vitória em 16 dos 22 estados nas eleições para o Senado.
Arena e MDB existiriam até dezembro de 1979, quando uma nova reforma partidária — esta, ironicamente, para dividir o MDB — reintroduziu o multipartidarismo no Brasil. O MDB acrescentou ao nome o P de partido, como exigia a nova lei, e, 50 anos depois do AI-2, é hoje a legenda de maior representação parlamentar no Brasil. Uma história que começou na sala de embarque do aeroporto de Paris. (Agência Senado)
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