Francimar Moreira
A ideia da construção de uma barragem no rio Trici, no município de Tauá, no Estado do Ceará, remonta ao início do século XVIII – até Dom Pedro I teria sido estimulado a pensar sobre o tema e se manifestado favoravelmente.
Alimentada por mais de dois séculos, a proposta povoava o imaginário dos sonhadores e nutria a esperança dos cearenses carentes de água e de todos os benefícios que ela pode proporcionar. Contudo, o projeto era objeto de acirrada discórdia entre os que teriam suas propriedades inundadas.
Ocorreu que, como para renovar ideias e encadear os fatos, no final do ano de 1986, quando era presidente do Brasil o maranhense José Sarney de Araújo Costa, a Confederação Nacional da Agricultura programou realizar, em Brasília, uma reunião de presidentes dos sindicatos de trabalhadores rurais de todo o Brasil, para a qual o presidente José Sarney foi convidado e se comprometeu a comparecer.
Sucedeu, entretanto, que no dia do referido evento deflagrou-se, na Capital Federal, um tumulto protagonizado por taxistas, proprietários de transportes alternativos e motoristas de ônibus; fato que culminou em baderna e intervenção policial, cuja magnitude desaconselhou a saída do Presidente da República do Palácio do Planalto.
Os organizadores do encontro confederativo solicitaram à Presidência da República que o presidente José Sarney se dignasse a receber, no Palácio do Planalto, uma comissão formada por dirigentes da Confederação Nacional e um grupo de sindicalistas. O presidente prontamente, concordou.
Entre os sindicalistas escolhidos para o honroso encontro com o Presidente da República, encontrava-se Maria José Gomes Setúbal, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tauá, prima e cunhada de meu saudoso pai, Luiz Gomes de Freitas.
A zelosa dirigente sindical tinha duas incumbências naquele histórico e honroso encontro com o Presidente da República. Nada pessoal: tudo em nome do povo tauaense e dos trabalhadores rurais de seu sindicato. Sua única e grande preocupação era cumpri-los a contento.
A sindicalista se posicionou na fila de cumprimentos, de forma a ser a última a saudar o presidente. Ao apertar a mão de Sarney, cuidou de se apresentar:
— Chamo-me Maria José Gomes Setúbal, sou presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tauá, na região dos Inhamuns, no Ceará e tenho dois encargos a cumprir: entregar a Vossa Excelência este abaixo-assinado e pedir, pelo amor de Deus, a construção de uma barragem no rio Trici, que é um sonho de nosso povo há dois séculos.
Sem soltar a mão de sua interlocutora, o presidente Sarney entregou o envelope ao ajudante de ordens, passou a afagar a mão de Maria José e disse:
— Inhamuns, terra de meus antepassados! E, alternando o olhar entre os deslumbrantes olhos verdes e os pés de Maria José, enfiados em um par de havaianas usadas, Sarney demonstrou toda a sua sensibilidade, enquanto afagava delicadamente a mão da trabalhadora rural, contemplava os seus belos olhos e aferia o que denunciavam suas sandálias.
Antes de soltar a mão da sindicalista, o presidente Sarney pediu que chamassem o Dr. Fialho (Vicente Cavalcante Fialho), cearense de Tauá, nosso parente, engenheiro civil e seu então ministro de Irrigação e, mais tarde, ministro de Minas e Energia.
O Dr. Vicente Fialho era parente próximo de nosso saudoso Vicente Bernardino Bezerra Fialho, que viveu em imperatriz de 1966 a 1994, quando faleceu. Aliás, Vicente Bernardino era pai do professor Vicente Júnior, do advogado Vandir Fialho e dos médicos Byron e Mirian, residentes em imperatriz-Ma. Além de ministro, o Dr. Fialho foi prefeito nomeado de Fortaleza e de São Luís.
Ao adentrar o gabinete presidencial, o ministro foi apresentado à sindicalista pelo presidente Sarney, que, de pronto, informou-a:
— O Dr. Fialho, Maria José, é natural de Tauá e é seu parente. É ele quem vai cuidar da construção da barragem do Trici. Por acaso você não o conhece?!
– Sim, Presidente; conheço a ele e a quase toda a sua família; afinal, somos tauaenses da gema.
Encerrada as apresentações, Sarney virou-se para seu ministro e, entregando-lhe o envelope recebido de Maria José, disse:
— Doutor Fialho, aqui está o pleito de nossa visitante, e, como nossos engenheiros estão mais próximos do local da barragem do que ela, gostaria que, quando ela chegar a sua terra os levantamentos técnicos para a construção da obra já estejam sendo realizados. No dia seguinte, chegou a Tauá um avião com vários profissionais e o trabalho foi iniciado.
Concluído o estudo sobre a necessidade do volume de água para abastecer a cidade de Tauá e as localidades vizinhas, bem como sobre o potencial pluviométrico da região, já então conhecido pelo Departamento Nacional de Obras Contra Secas (DENOCS), optaram por um lago de dimensão tal que demandaria quatro temporadas (quatro anos) de chuvas normais para encher. O trabalho de construção foi iniciado no segundo trimestre de 1987.
O prazo para conclusão da obra foi seriamente discutido; tinha de ser antes do término do governo do presidente José Sarney, no final de 1989. E, apesar do empenho governamental e da obra em andamento contínuo, muitos duvidavam de sua conclusão no tempo estabelecido, assim como não acreditavam que o lago, sustentado por uma montanha de concreto e ferro, um dia transbordasse.
A primeira dúvida não demorou muito a ser eliminada. Em outubro de 1989, a obra estava quase concluída; faltavam apenas algumas peças para o acionamento das comportas, as quais deveriam ser levadas do Rio de Janeiro e seriam instaladas em algumas horas. Quanto ao tempo que demoraria para vê-la transbordando, diziam muitos:
— Somente Deus sabe quando poderemos ver isso acontecer.
Parecendo destinar-se a sequenciar os fatos, em 24 de dezembro de 1989, às 4h, meu irmão Luiz Moreira Gomes (Valdimar), em companhia de meu inesquecível pai, saíram de Imperatriz-Ma., com destino ao Ceará. Chegaram a Tauá por volta das 16h e, meia hora depois, estavam na localidade Maravilha, na residência do tio Miguel, esposo da sindicalista Maria José, os quais moravam próximos à parede da barragem.
Após cumprimentar o irmão, meu pai perguntou: “Cadê a Mazé, Miguel?!”.
– Acho que ela enlouqueceu, Luiz. Fez o almoço cedo, serviu e saiu Trici acima; disse que ia se despedir das árvores em cujas sombras ela brincava, quando era criança. Pois, segundo intuiu ela, vão ser todas cobertas de água muito em breve.
Demonstrando pressa, o Valdimar disse:
— Quero ver a parede da barragem, vamos lá, tio!... Sem delonga saíram...
Ao se aproximarem da montanha de ferro e concreto, observaram que havia uma pequena poça d’água, talvez de um metro de diâmetro, resultado de um chuvisco na noite anterior, e onde alguns passarinhos faziam uma festa.
Após um instante de contemplação, o Valdimar disse:
— vamos embora, pai, enquanto não escurece!
Ao chegarem à casa de nossos tios, a Maria José já se encontrava. De pronto meu pai perguntou-lhe:
— E daí, Mazé, abraçou muitas árvores?!
– Abracei tantas, Luiz, que estou com os braços ralados (...).
Incontinenti o Valdimar entrou no carro e gritou:
— Vamos embora, pai, está de noite! E se foram apressados.
Por volta das 19h, chegaram a Santa Fé, onde já estavam sendo esperados. Ali viveram meus avós paternos e o meu pai foi criado. Aliás, já se encontravam ali desde o dia anterior, meus irmãos Armando e José Maria, que haviam ido passar o Natal e o Ano Novo. Após jantarem, foram sentar-se na calçada da frente, botar a conversa em dia.
Algun tempo mais tarde, verificaram que um minúsculo relâmpago brilhava, de vez em quando, no leste cearense. O mesmo fenômeno foi acompanhado com expectativa pelo tio Miguel e a família, lá da Maravilha, a cerca de quarenta quilômetros da Santa Fé. Logo, os relâmpagos foram se tornando mais frequêntes e se aproximando.
Às 21h, um dos presentes, em Santa Fé, proclamou:
— Vamos dormir, minha gente, para não espantarmos a chuva!
Dormir mesmo, ninguém dormiu; as expectativas de chuva e do ronco do trovão, não deixaram; sobretudo porque havia uma barragem que carecia de quatro temporadas de chuvas regulares para encher.
O relâmpago ampliava o seu clarão e logo estrondos de trovoadas pipocaram. Por volta das 22h começou a chover nos Inhamuns. A princípio parecia uma chuva como outra qualquer, mas, o diferencial se fazia notar no peso de cada ‘pingo’ d’água que caía do céu. Nuvens pareciam programadas para despejar um aguaceiro sobre os sertões cearenses.
Na Santa Fé, alguns ainda dormiram um pouco, mas, na Maravilha, ninguém cochilou. Pensavam ininterruptamente sobre a barragem. “Tomaria água? Iria encher? Romperia? O que aconteceria, afinal?!” Depois de cinco horas de chuvarada sem cessar, o tio Miguel caminhava para a cozinha, abria a janela que dá vista para o lago da barragem e observava vigilante e preocupado.
Às 3h de 25/12/1989, o tio Miguel, impacientemente, circulava dentro de casa. Enquanto a Maria José, desesperada, orava e se apegava com todos os santos, pedindo que a chuva cessasse. Afinal, muitas famílias residiam na área que seria inundada e corriam risco de morte. Sem contar que ela estava sendo responsabilizada pelos que não aceitavam a construção do lago que inundaria suas terras.
As orações não surtiam nenhum efeito, e a chuva parecia cair do céu sob encomenda; na mesma intensidade, como se densas nuvens se desmanchassem em água sobre as margens do rio Trici. Maria José e os filhos rezavam aflitos; afinal, até familiares deles estavam sujeitos a ficar ilhados e a morrer afogados.
Para o tio Miguel e sua Mazé, uma noite nunca foi tão longa. Às 5h de 25/12/1989, alguém bateu à porta e gritou:
— Seu Miguel, a barragem está cheia e pode arrebentar!...
Meu tio abriu a janela da cozinha e, junto com a luz do dia que surgia, veio um relâmpago e ele pôde vislumbrar o mar de água, e, em total descontrole gritou:
— Velhinha, pelo amor de Deus, a casa vai ser invadida pela água!
Incontinenti, saíram todos correndo em direção à parede do grande Lago.
Às 6h, já se encontravam, no entorno da elevação de concreto necessária à contenção daquele volume d’água, algumas centenas de pessoas contemplando o espetáculo que a natureza proporcionava aos moradores da região. Impressionada com o lago e a queda d’água das comportas, a multidão sentia-se deveras deslumbrada. Logo a polícia chegou e começou a orientar que se afastassem.
O caso aqui relatado contém, em princípio, uma aparente contradição: é o fato de o Departamento Nacional de Obras Contra Secas (DNOCS), haver estimado – baseado em décadas de levantamentos dos índices pluviométricos da região – que a barragem precisaria de quatro anos de invernos normais para encher; porém, contrariando o que seria uma previsão científica, apenas uma chuva, de sete horas, a fez transbordar. Creio tratar-se de um FENÔMENO para cientistas e pesquisadores investigarem.
Não consegui informação sobre o volume de água daquela chuva. Dizem que não havia pluviômetro na região. Mas, para que somente uma chuva, de sete horas, tenha sido o bastante para que a barragem do Trici acumulasse dezessete milhões de metros cúbicos de água e transbordasse, quando a previsão era de quatro anos, é, por si só, um flagrante enigma. Foi ainda um mistério o fato de muita gente ter ficado exposta ao relento, no desespero da escuridão, sob chuva torrencial, risco de descargas elétricas e não ter havido nenhuma vítima.
Algum tempo depois, o lago já era um patrimônio regional e motivo de orgulho e muita satisfação. Mas se impõe uma questão: a repentina e única chuva de sete horas, e ainda fora da época chuvosa, que despejou a jusante da barragem do rio Trici um volume d’água muitíssimo superior à previsão científica, foi, a meu juízo, um prodígio que merece ESTUDO E REFLEXÃO.
Particularmente, não acredito em casualidade. Houve, em minha modesta opinião, uma conjunção de fatos misteriosos, os quais me fazem acreditar que, produzindo e guiando aquela chuva, INTERVEIO UMA FORÇA COM DESÍGNIO DEFINIDO.
Este texto, que enviarei à Câmara de Vereadores e à Academia de Letras de Tauá, na expectativa de que seja preservado, ofereço a todos os meus diletos e incrédulos amigos, porém, com carinho especial, ao meu caríssimo Hélio José de Sousa, que fez chacota desse extraordinário relato.
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