* Roberto Wagner
Desde o alvorecer dos tempos, travamos um luta, nem sempre gloriosa, contra a nossa visceral compulsão para trair: trair o cônjuge, trair o sócio, trair os amigos, trair a confiança que nos depositam; trair, até, a nós mesmos, o que acontece toda vez que dizemos ou fazemos algo que vai de encontro às nossas opiniões ou aos nossos mais íntimos desejos.
A história registra inúmeros casos de traição. Ao comer a maçã de cuja árvore devia se manter afastado, Adão traiu a confiança de ninguém menos do que Deus, conforme se extrai do Velho Testamento. Hitler (que, para o bem da humanidade, deveria ter sido traído, pela morte precoce, ainda no ventre materno), em seus últimos dias, quando já não havia mais nenhuma dúvida de que o Terceiro Reich chegara ao fim, viu-se traído por alguns de seus comandantes mais próximos, casos, por exemplo, de Himmler e Goering. Para citar um exemplo mais recente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ajudado que foi pelo já falecido ex-presidente Itamar Franco para chegar ao Palácio do Planalto pela primeira vez, virou-lhe as costas quando este, mais à frente, lhe pediu apoio para se eleger governador de Minas Gerais, talvez o único grave senão na exuberante biografia daquele que é chamado, com toda razão, de Pai do Plano Real.
Vêm, então, algumas inevitáveis perguntas: como devem reagir os traídos? Matar o traidor? Xingar o traidor? Quedar silente, fazendo de conta de que traição alguma ocorreu? Para voltar ao emblemático exemplo da traição de que foi vítima o ex-presidente Itamar Franco, cito, de memória, a seca resposta que ele deu a um jornalista quando este lhe perguntou, pouco depois do episódio, o que achava da deslealdade de FHC: “Respondo-lhe fazendo minhas as palavras de Santo Ambrósio de Milão, para quem o primeiro dever do homem há de ser o da gratidão.” Dele, sobre esse assunto, até sua morte, anos depois, nada mais se conseguiu tirar.
Fico pensando como deve estar se sentindo, nesse momento, José Dirceu, que, após passar, por conta de uma condenação sofrida no processo do “Mensalão”, quase um ano atrás das grades, pena que cumpriu em Brasília, na penitenciária da Papuda, está de volta à dura realidade do cárcere, desta vez em Curitiba, em face de prisão temporária decretada no bojo da “Operação Lava-Jato”.
Que fique bem claro que não considero essa sua nova prisão eventual exagero, ou coisa que o valha, do juiz Sergio Moro. Não, não sou nenhum alienado, pelo menos a ponto de não ter discernimento para enxergar coisas óbvias. Entendo que o ex-ministro da Casa Civil, a despeito de tudo o que de positivo se possa falar dele, voltou ao xadrez única e exclusivamente porque não deixou de continuar zombando de tudo e de todos, como se as nossas instituições tivessem deixado de existir e o povo brasileiro tivesse perdido a capacidade de se indignar.
Voltando à emblemática imagem de José Dirceu novamente enjaulado, dá para imaginar que ele, na terrível e angustiante solidão de sua cela, deve estar se lembrando, evidentemente sentindo-se traído, do parágrafo final do romance Dom Casmurro, obra-prima de Machado de Assis, adaptando-o para a sua desdita pessoal: “E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!”.
Advogado*
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