*Roberto Wagner
Não é de agora que se sabe que, em muitos casos, a verdade histórica só costuma vir à tona com o passar do tempo; até que se chegue a isso, o denso nevoeiro inicial impedirá que se saiba como os fatos realmente ocorreram, o que, não raro, dará ensejo ao surgimento de versões equivocadas ou distorcidas acerca do verdadeiro papel, e respectiva conduta, das pessoas que estiveram diretamente expostas às correntezas dos acontecimentos.
Revisões históricas, como também se sabe, têm corrigido injustiças, pequenas ou monumentais. Via de regra, essas revisões se dão, infelizmente, quando o injustiçado já morreu. Felizes, portanto, aqueles que, ainda em vida, veem os erros interpretativos de que foram vítimas ser reparados.
Esses comentários sobre injustiças históricas vêm a propósito do irretocável artigo da respeitada jornalista Dora Kramer ("Autocombustão"), publicado pela revista Veja na edição nº 2.660 (pág. 114), de 13/11/2019, onde, com a habitual maestria, examina o papel que tiveram, na cena política nacional, os presidentes que tivemos no período pós ditadura militar, inclusive o atual, pontuando - de forma sucinta, devido ao pequeno espaço do citado artigo - quem mais desagregou e, portanto, quem mais contribuiu (ou, vá lá, tem contribuído) para a cizânia institucional do país.
Ao se referir ao ex-presidente Sarney, a articulista diz o seguinte: "(...) assumiu no susto a Presidência e levou a transição de maneira incrivelmente bem negociada com uma Assembleia Constituinte na rua e um regime militar ainda nos calcanhares". No parágrafo seguinte, afirma ter sido o ex-presidente Fernando Collor, a quem chama de "confrontador", uma espécie de "contraponto à conciliação de Sarney, vista à época como malsã condescendência ao sistema de privilégios".
Às vésperas de completar noventa anos de idade, e ainda com lucidez e prestígio pessoal suficientes para ser ouvido em qualquer discussão relevante, o ex-presidente José Sarney deve ter lido tal crônica com o mesmo prazer sentido por aqueles a quem o destino dá a sorte grande de ver corrigidas, ainda em vida, certas injustiças que, em seu desfavor, foram cometidas.
Diga-se, em acréscimo, que, além desse insuspeito artigo de Dora Kramer, têm-se observado, aqui e ali, comentários não menos revisionistas, de gente igualmente séria, sobre a postura de Sarney ao longo do tempo em que presidiu o país. Os recentes testemunhos dados em relação ao que fez, sem alarde ou fanfarrices, em prol das obras de caridade tocadas pela freira baiana Irmã Dulce, há pouco canonizada, são, por exemplo, uma prova disso. Até o meu dileto amigo Francimar Moreira, que tantas vezes já torceu o nariz para o ex-presidente, e que não faz segredo que dele diverge frontalmente, tirou do anonimato, em um de seus últimos contos aqui publicados, por sinal de beleza extraordinária, um episódio real, envolvendo, inclusive, parentes seus, em que se vê Sarney, sem retoques, em situação de inquestionável grandeza moral.
Concluo esta, como sempre, singela e despretensiosa crônica dizendo, a quem interessar possa, que, por razões de mero posicionamento ideológico, jamais fui eleitor de Sarney, ou de seus filhos, mas que não ignoro o fato de que, não fosse o ambiente de apaziguamento, de diálogo, de tolerância, de perfeita convivência entre os Poderes da República e de plena liberdade vivenciado pelo país durante o seu governo, não teriam sido gestadas as condições de pluralidade e de amadurecimento político que proporcionaram as conquistas alcançadas pelos governos que vieram em seguida; ou seja, que, sem as bases alavancadas por ele, o Brasil certamente estaria pior do que está hoje. Um bom fim de semana a todos.
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