Prof. Gaudêncio Torquato

O painel da crise

Cientistas sociais têm se dedicado, nesta quadra de tormentos, angústia e medo, a tentar desvendar os efeitos da pandemia da covid-19 sobre a moldura das Nações. Tarefa complexa, eis que agrega fatores imponderáveis. Mas algumas variáveis podem entrar na análise com razoável dose de probabilidade, a partir da premissa geral: o mundo ingressará numa era de muitas mudanças nas áreas da economia, da política e dos costumes. Alguns parâmetros têm sido consensuais. Vejamos alguns.

Fechamento x abertura: A antinomia

Há uma visível antinomia a ser debatida. De um lado, a pandemia tem mostrado o despreparo dos países para enfrentar com força a paisagem de devastação. Ou tomaram consciência muito tarde do que poderia acontecer ou não dispunham de meios suficientes para atenuar os danos. Ambas as hipóteses são críveis. Essa situação sinaliza, portanto, para um horizonte carregado com as nuvens da solidariedade e da cooperação. Ou seja, é plausível a ideia de um planeta mais parceiro e solidário, o que levaria os países, de certa forma, a romper seu isolamento. Mas uma forte corrente irá na linha contrária, pregando o fechamento de fronteiras físicas e comportamentais.

O nacionalismo

Os países, sob o argumento de que o novo coronavírus é fruto da migração de pessoas pelo mundo, a partir de sua saída da China, tenderiam a instalar rigorosos controles de suas fronteiras terrestres e aéreas. À sombra dessa posição, floresceria o reforço das políticas de obstrução a imigrantes com forte amparo no nacionalismo. Os nativos defenderão o ideário do "o país é nosso" e cada um deve defender o que é seu. Na União Europeia, pode se avolumar a política de saída de países do bloco, na esteira do "Brexit". Os Estados Unidos, principalmente com Donald Trump, estarão liderando essa corrente de fechar espaços.

Na cooperação

Se for essa a prática a vingar, fica a questão: e como permanecerão as relações internacionais, particularmente nos campos das tecnologias, da medicina, do meio ambiente? Haveria maior intercâmbio nessas áreas, sim, pelo receio de que novos grandes eventos hão de exigir, desde já, maior troca de informações entre os níveis científicos. Ou seja, a interlocução nos campos da ciência não seria óbice para a aplicação de políticas rígidas de controle das fronteiras entre as Nações. Haveria um pacto de convivência.

Na economia

A recuperação dos vetores econômicos, por seu lado, não será tarefa exclusiva de um país. Mesmo com arrefecimento do conceito de globalização e fortalecimento do nacionalismo, a economia dependerá do desempenho global dos PIBs nacionais. Os grupos e corporações continuarão a querer resultados rentáveis de seus produtos, com bom desempenho no mercado financeiro. O FMI, a China, os Estados Unidos e a União Europeia intensificarão esforços para fazer crescer suas economias. Haverá, assim, um acórdão tácito sobre a necessidade de crescimento e resgate do poder econômico dos países, claro, sem deixar de lado a competitividade entre os respectivos mercados.

Na política I

A primeira leitura é a de que a sociedade mundial tentará passar a limpo sua moldura de líderes. Estariam todos, ou a ampla maioria, com seus portfólios e currículos corroídos pelo "status quo". Seriam substituídos por novos perfis, um grupamento mais centrípeto do que centrífugo - ou seja, mais das margens e núcleos organizados e menos dos velhos e centrais espaços. Observa-se acentuado revigoramento dos perfis comunitários, quadros das regiões, municípios e localidades. A política ganharia força com a distritalização do voto. Os eleitores, por sua vez, estariam propensos a prestigiar perfis mais fortes, sob o apelo da autoridade (não confundir com autoritarismo ditatorial), da respeitabilidade da competência.

Na política II

Os partidos de massa estarão dando adeus a um ciclo. Já os partidos nucleares - de grupos, setores, regiões, representativos de entidades e profissões - tendem a se multiplicar sob a égide de um colchão social mais próximo às demandas das sociedades organizadas. Teríamos menor polarização entre duas posições - esquerda/direita - e maior pulverização de ideários mais pragmáticos em todo o espectro partidário. A hipótese que se levanta é a da organicidade social. Teremos sociedades mais organizadas, atentas, críticas e com incisiva participação no processo político. E com forte rejeição aos populistas.

Na mudança política

Leva-se em conta de que as Nações haverão de engrossar o colchão social - de ajuda aos contingentes mais carentes, aqueles mais sujeitos às intempéries. A partir de uma situação de melhor assistência às margens, é razoável apostar em uma movimentação centrípeta - das margens para o centro - com poder de definição de comandos de governos e representantes congressuais. Projeta-se uma sociedade mais solidária e fortalecimento dos programas de assistência social por partes de governos e universo produtivo. A desigualdade estará no alvo das instituições nacionais e internacionais.

No mundo do trabalho

Parcela do setor produtivo debaterá com as bases de trabalhadores novas relações e mudanças no mundo do trabalho. A criatividade ganhará ênfase. O home office será alavancado. O empreendedorismo no campo dos pequenos negócios será impulsionado. Novas áreas serão abertas, principalmente no setor de serviços. Os sindicatos, para ganhar legitimidade, tenderão a oferecer serviços úteis às suas bases. O mundo do trabalho, como se vê hoje, absorverá muitas mudanças.

O Brasil I

A crise impactará a esfera política e governamental. Não há como se livrar de impactos negativos. Se o governo está pensando em alavancar sua imagem positiva com a recuperação da economia, pode esquecer. Primeiro, a economia não vai se recuperar no curto prazo. Segundo, o universo do desemprego tende a aumentar. Terceiro, mesmo com resgate estreito da economia, isso não vai se transformar em votos. Os 30% do presidente Bolsonaro só vingam se o PT continuar a ser adversário competitivo. Não é o caso. O petismo está fechando uma era. Não dá para acreditar que volte tão cedo ao poder.

O Brasil II

A direita conservadora tende a manter viva sua chama, mas se não contar com efetiva adesão das classes médias, entrará em erosão. A esquerda radical também perderá volume. Os núcleos centrais, a partir do poderoso contingente de profissionais liberais, crescerão na paisagem. Os atuais governadores poderão ganhar força, caso administrem muito bem a crise. E saibam lidar com o fenômeno da rejeição. Novos quadros estão sendo buscados. Ainda não apareceram no cenário.

São Paulo, papel decisivo

Com o maior contingente eleitoral - 45 milhões de eleitores - e que agrega os maiores núcleos organizados da sociedade, São Paulo terá papel decisivo no futuro da política. Tudo vai depender de como o Estado lidará com a crise até o final.

As eleições deste ano

Deverão ser adiadas. Haverá pouco espaço para sua organização. Devem ocorrer em novembro. E a componente crise estará no centro do processo decisório. Lembrando: as categorias que exercem serviços médios serão muito prestigiadas.