Elson Araújo
O Tribunal de Justiça Maranhense tem seguido à risca a Constituição Federal quando julga as ações de indenização por danos morais interpostas pelos familiares de presos mortos nos presídios do Estado, o que se tornou frequente no Maranhão. O TJ em seus julgados reconhece que o Estado responde objetivamente pelos danos morais decorrentes de morte de presidiário dentro dos estabelecimentos prisionais.
Numa decisão de maio deste ano, ao julgar um desses processos, a desembargadora Cleonice Silva Freire ressaltou o preceito constitucional do dever do Estado de garantir a integridade física e moral de presos, mantendo vigilância adequada e eficiente para evitar a propagação de armas em unidades prisionais. No caso em apreço, o Estado do Maranhão foi condenado ao pagamento de danos morais no valor de R$ 60 mil à família de um detento assassinado durante uma rebelião em Pedrinhas ocorrida em 2008.
A conta do contribuinte por causas dessas mortes nas cadeias do Estado aumenta a cada ano. Segundo dados do Sindicado dos Agentes Penitenciários divulgados na semana passada na imprensa, de 2007 até 2012 foram registradas 103 mortes só nos presídios da capital. Com o massacre ocorrido em Pedrinhas na semana passada, e mais os outros episódios com mortes registrados em 2013, esse número sobe para 140. Sabe-se que cada caso é um caso, mas se todos os familiares dos mortos decidirem ingressar na Justiça com pedidos similares chegaremos a um valor de 8,4 milhões de reais só em indenizações; valor que pode ser muito maior ao se considerar que já foram julgadas indenizações de até R$ 200 mil reais.
Em nosso ordenamento jurídico contamos com uma lei, a de Execuções Penais, que se fosse aplicada poderia pelo menos diminuir tensões nos presídios.
O juiz de direito da comarca de Imperatriz, Adolfo Pires da Fonseca, numa análise rápida da situação vivida hoje nos presídios brasileiros, entende que o atual modelo não ressocializa nem pune o preso, ao contrário do modelo americano. O magistrado defende que no caso do Maranhão, uma primeira entre muitas outras medidas seria a descentralização de Pedrinhas com a construção de mais presídios. Para ele, o preso deve cumprir pena próximo dos familiares.
As opiniões e teses apresentadas são muitas, mas a verdade que se constata nos presídios brasileiros hoje é uma verdadeira tragédia. Mas como já dizia Beccaria, “nossos costumes e nossas leis retrógradas estão muito distantes das luzes dos povos”.
A estimativa, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é de pelo menos 550 mil homens e mulheres presos aguardando o cumprimento de pena, ou mesmo serem sentenciados. Um exército sem causa sonhando todos os dias com a liberdade, mesmo forçada, traduzida em incontáveis rebeliões quase sempre tendo como resultado cenas de barbárie, como essa ocorrida na última quarta-feira (9) na Penitenciária Agrícola de Pedrinhas com nove mortos confirmados.
A situação é tão grave que o próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já chegou a afirmar que preferiria morrer a cumprir pena nos presídios brasileiros, comparando-os a “masmorras medievais”. Talvez nesse momento o ministro tenha se lembrado do sempre atual Cesare Beccaria, que no seu “Dos Delitos e das Penas”, já definia as prisões como “horríveis mansões do desespero e da fome”, definição que bem pode ser aplicada à situação dos presídios.
No Brasil é assim: quando o Estado não mata, por meio de sua polícia para sufocar as rebeliões e tentativas de fugas (vide o massacre do Carandiru) eles mesmos (os presos) submergem-se num processo autofágico numa aparente luta pela autopreservação: matar para não morrer. Tudo indica que foi isso que teria ocorrido na semana passada mais uma vez, na Penitenciária Agrícola de Pedrinhas, com o enfrentamento das facções criminosas “bonde dos 40” e o chamado Primeiro Comando do Maranhão (PCM). Resultado do confronto: nove mortes, nove a menos do que na rebelião de novembro de 2010, quando foram assassinados 18, muitos decapitados.
Esse enfrentamento nos remete a Thomas Hobbes, no seu Leviatã, quando defendia que a primeira lei natural do homem é da autopreservação que o induz a impor-se sobre os demais. Estaria ele certo?
Para Hobbes, a vida seria uma guerra de todos contra todos, na qual o homem seria o lobo do homem.
No contexto de sua época, o autor se referia à origem do Estado, mas numa linguagem moderna tal ideia se manteria se for considerado o atual momento pelo qual passa o sistema prisional brasileiro.
O pior de tudo é que, em que pese as tratativas e leis para modernizar o sistema carcerário a médio e longo prazo, não se vislumbra uma solução, pelo menos paliativa para o enfrentamento desse problema. Repita-se: são 550 mil presos, ao custo de R$ 2.500 por mês, aos quais o sistema espera que se juntem mais 350 mil, que é o número estimado de mandados de prisão expedidos pela Justiça brasileira, aguardando cumprimento.
O mais traumático nessas rebeliões com mortes é a frieza como a sociedade as assimilam. Não há comoção popular manifesta. É como se nada tivesse ocorrido. A repercussão é maior no exterior do que nas quatro linhas do país. A sensação que fica é de que a pilha de presos mortos não tem qualquer significado para a sociedade.
“O homem apenas é cruel por interesse, por ódio ou por medo”, dizia Beccaria. No caso das rebeliões percebe-se que se estabeleceram os três itens: interesse dos presos de chamar atenção para a situação de calamidade estabelecida na cadeia, o ódio do sistema e dos rivais e o medo de morrer.
O marquês de Beccaria, num trecho da sua clássica obra “Dos delitos e das penas”, talvez explique essa frieza como a sociedade brasileira vem absorvendo esses episódios ao escrever que “o coração humano não é capaz de sentimento inútil; todos os seus sentimentos são resultado das impressões que os objetos provocam sobre os sentidos”.
As cenas de barbárie, dentro e fora das cadeias, tornaram-se tão triviais que o que se sentia ontem não se sente mais hoje.
Sem uma solução plausível para a crise no sistema prisional, nas cadeias brasileiras chegamos a uma triste constatação: o homem continuará a ser o lobo do homem fazendo prevalecer, a cada dia, o extinto da autopreservação que o autoriza a matar, decapitar e buscar constantemente a liberdade, mesmo que forçada.
Elson Mesquita de Araújo, jornalista.
Publicado em Cidade na Edição Nº 14832
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