Paulo Thiago Fernandes Dias 1
A despeito das evidências históricas em sentido contrário, segue recorrente o discurso na linha de que a redução dos altos índices de criminalidade só se dará a partir do desprestígio ou da completa desconsideração dos direitos fundamentais, notadamente os afetos ao processo penal. Repete-se, em conjunto, que "o processo penal brasileiro é garantista" (sic). Entretanto, além da ausência de qualquer embasamento científico, essa alegação sofre também de profunda anemia histórica.
Mesmo ciente da advertência deveras pertinente de Geraldo Prado (REmerj, n. 67, 2015), acerca da cômoda opção em abordar o autoritarismo no processo penal brasileiro a partir de uma mera "história legislativa", entende-se que essa metodologia se mostra mais didática para o alcance deste escrito.
Ainda sob a égide do Estado Novo, aprovou-se em 1941 o Decreto-Lei nº 3.689, também conhecido como o Código de Processo Penal. Este documento legislativo segue vigente, apesar de alterações pontuais e do Texto Constitucional aprovado em 1988, sendo seguro afirmar que a sua essência autoritária se mantém incólume.
Conforme a Exposição de Motivos do Código referido acima (disponível em: <http://honoriscausa.weebly.com/uploads/1/7/4/2/17427811/exmcpp_processo_penal.pdf>), cunhada pelo então Ministro da Justiça, Francisco Campos, o processo penal brasileiro deve nortear-se pela restrição à incidência do in dubio pro reo, à ampliação dos casos de prisão em flagrante, pela atuação agigantada do poder judiciário, inclusive pela possibilidade de determinar medidas de ofício (sem requerimento das partes), dentre as quais, a deflagração de ações penais para algumas espécies de infração penal, e a interpretação do silêncio do acusado em seu desfavor. Este rol é exemplificativo. Francisco Campos destacou ainda a manifesta influência ideológica e jurídica do Estatuto processual penal italiano aprovado durante o regime fascista. Em síntese: o Código de Processo Penal brasileiro, em consonância com a Constituição de 1937, retratou a opção política, ideológica e jurídica por um regime autoritário de solução das causas penais.
Qual o sentido em realizar esse breve resgate histórico? Reforçar que esse diploma processual brasileiro, em que pese sua natureza fascista, conviveu e convive com períodos, oficialmente autoritários (Estado Novo e de 1964-1985) e com outros supostamente democráticos (vide o período pós-ditadura civil e militar). Afirma-se também que, mesmo com o advento da Constituição da República, a ideologia autoritária, reproduzida no Código de Processo Penal (e noutros diplomas), continua alimentando e conduzindo as práticas do Sistema de Justiça Criminal. Veja-se, por exemplo, o número abusivo de conduções coercitivas ilegais e inconstitucionais determinados judicialmente nos últimos anos (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,total-de-conducoes-coercitivas-cresce-304-pos-lava-jato,70001873565).
Com os dizeres acima, reitera-se o esforço de grandes nomes da ciência jurídica pátria, como Geraldo Prado, Ana Claudia Pinho, Miguel Wedy, Maria Lucia Karam, Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Junior, Ricardo Gloeckner, Jacinto Coutinho, Rubens Casara, Nereu Giacomolli, Lenio Streck, Vanessa Schinke, dentre outros, para que o processo penal brasileiro se converta em instrumento racional e democrático de solução das causas penais, afastando-se do seu, tradicional, caráter autoritário e violento. Para tanto, além da evolução científica, faz-se necessário que a sociedade se convença de que a negação de direitos fundamentais, principalmente em sede de processo penal, vai na contramão da luta por um país menos violento.
Em resposta à promulgação da Constituição de 1988, que consagra um rol não exaustivo de direitos fundamentais, possibilitando a superação de práticas estatais antidemocráticas, o Brasil, ainda que disfarçadamente, optou, politicamente, pela expansão do Direito Penal (com a criação de novos tipos penais e com o recrudescimento de penas) e pela asfixia de garantias no âmbito processual penal (conforme decisões que relativizam a presunção de inocência - in dubio contra reum ou in dubio pro societate -, que menosprezam a teoria das nulidades e que estabelecem a prisão processual como regra).
Enquanto órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública (setores da Polícia Civil) e ao Sistema de Justiça Criminal (segmentos do Ministério Público e do Judiciário) colhem louros políticos e institucionais pelas supostas cruzadas contra o crime, os índices de criminalidade, de encarceramento e a sensação de insegurança veem o céu como limite. É também preocupante a percepção de que instituições, embora prestigiadas pelo ordenamento constitucional aprovado em 1988, esmerem-se pela continuidade de um modelo de processo penal autoritário (nesse sentido, destaca-se o projeto de medidas, supostamente, contra a corrupção idealizado por setores do Ministério Público Federal).
Não é a obediência aos direitos fundamentais que propicia o incremento da criminalidade, mas sim a desconsideração a tais conquistas históricas e caras a qualquer sociedade, pretensamente, civilizada. É necessário evoluir. E essa evolução passa pela superação da ideologia autoritária, ainda, informadora do processo penal brasileiro.
1 Doutorando em Direito Público pela Unisinos/RS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF/RJ. Advogado
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