Kayla Pachêco

 

“Não sei dormir sem ler, o livro é a melhor invenção do homem”.

(Carolina Maria de Jesus)

 

Pelo próprio instinto de homo sapiens, dia a dia nossas experiências vão nos moldando, ora pela ignorância, ora para descoberta, sempre pelo desejo de conhecer. Assim como teorizou Descartes, aprendemos na filosofia que o princípio do conhecimento deve partir da dúvida, aqui traduzida grosso modo como curiosidade, desejo de saber, uma necessidade tão vital quanto o alimento é para o corpo.

Essa característica nata aos seres humanos nos trouxe até aqui na evolução da espécie. Através da observação, os segredos do universo foram desvendados. Pela escrita, as descobertas foram sendo registradas e as narrativas puderam ser repassadas. Com a leitura, passamos da mera satisfação de necessidades biológicas, como a de saciar a fome, ao registro da interação com esse mundo histórico, geográfico, social e literário.

Nesse processo, o ideal seria afirmar que evoluímos em civilidade na mesma medida com a qual fomos fazendo novas descobertas sobre o mundo, sobre os indivíduos e sobre a complexidade das relações sociais. Porém, embora haja quem considere que uma sociedade não pode retroceder seu grau de civilidade, o que percebemos é a presença de narrativas históricas que traduzem fatos e acontecimentos atrozes em plena Era pós-moderna.

No campo da semiótica, área da linguística dedicada à construção do sentido, o acontecimento marca uma experiência de grande intensidade, em que a rotina comum perde estabilidade em função do sentido que provoca como extraordinário no sujeito. “O acontecimento é um sobrevir, um evento não passível de antecipação, que causa uma interrupção brusca e momentânea na sequência discursiva. Tal evento arrebata violentamente o sujeito, transtornando-o e deixando-o sem ação”. (Inácio, 2019, p. 137).

É sobre esses acontecimentos, de pequena ou grande proporção, que transcrevo minha experiência mais recente com a leitura de uma obra que fala muito sobre a crueldade de nossa era. Para ilustrar as catástrofes que o ser humano é capaz de provocar, preciso falar sobre a FOME. Sim, uma das principais necessidades biológicas que os seres vivos têm de suprir para garantir sua sobrevivência.

A fome da qual me reporto vai além da ingestão de nutrientes, é a fome de conhecimento, de leitura, de voz, de dignidade. Para que um indivíduo possa sentir a necessidade de ler e conhecer o mundo, antes precisa vencer a fome de comida. Infelizmente, embora tenhamos evoluído em termos científicos, no campo do social, nossa espécie tem deixado a desejar. Entre guerras e desastres naturais, em toda a história da humanidade, a fome em seus diferentes aspectos, está entre as mais cruéis experiências da humanidade.

Pouco antes de entrarmos no cenário mundial da Covid-19, conheci a literatura do testemunho, área que reúne escritos sobre experiências vividas durante períodos perversos da história mundial. Figueiredo (2019, p. 24) descreve esse ramo da literatura “como fruto dos acontecimentos e eventos traumáticos do século XX, farto em catástrofes. Uma literatura com o teor altamente narrativo dos traumas e dos dramas vividos por esse período conturbado, consequentemente, alimentado pelos fluxos abruptos da história”.

Característica bem peculiar desse estilo é a voz dada aos excluídos, aos esquecidos e aos perseguidos, numa linguagem simples, mas carregada de sentido. Pelo viés de sua experiência dolorosa, os personagens da vida real traduzem na palavra, a sua leitura do mundo. Nesse aspecto, Maciel (2016) pontua como “uma possibilidade de apresentar relatos com um peso traumático e inarrável, levantando questões e dando voz às narrativas de minorias, de sobreviventes de holocaustos e de outras formas de genocídio, repressão e violação dos direitos humanos”.

Em meio aos estudos sobre o testemunho, no distanciamento social provocado pela pandemia do novo Coronavírus, conheci mais um rosto da fome, Carolina Maria de Jesus em seu “Quarto de despejo”. Assim como a fome e o desalento da família de Fabiano em Vidas secas, a leitura das linhas registradas no diário de Carolina deixa marcas muito profundas, provoca a emoção e instabilidade de um acontecimento.

Talvez pelos efeitos psicológicos que o período de isolamento possa provocar, ler Carolina tenha tomado o sentido de acontecimento que a semiótica investiga. As palavras simples registradas por uma favelada sem escolarização formal, que sempre tirou do lixo sua sobrevivência durante um período de grande instabilidade econômica na história do Brasil. Suas palavras são carregadas de uma visão crítica do mundo, muito peculiar e mais valiosa que a leitura de qualquer clássico da época. Suas reflexões sobre tantos vieses que o viver nos impõe, chegam como o grito de resistência de muitos indivíduos que tentam sobreviver à crueldade das sociedades pós-modernas.

A necessidade de narrar seu testemunho foi para Carolina tão essencial como o alimento pelo qual lutou para manter-se viva. Se aprendemos a cada dia, e somos resultado das leituras que fazemos, hoje posso afirmar que não sou a mesma depois do testemunho de Carolina Maria de Jesus. A cada passagem narrada sobre a angústia em tentar saciar sua fome de comida e de dignidade, a dor de quem está à margem da organização social é tão violenta quanto uma catástrofe.

Num contraponto com o momento que estamos vivendo, seguem transcritos alguns trechos que traduzem a experiência de Carolina diante do vilão da fome. Não há cenário mais atual do que o testemunho da moradora do quarto de despejo:

Não é aconselhável escrever a realidade... É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la...E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? O meu dilema é sempre comida...A minha enfermidade é física e moral...Eu não dormi porque deitei com fome, e quem deita com fome não dorme...A voz do pobre não tem poesia...Não há coisa pior na vida do que a própria vida... Quem escreve gosta de coisas bonitas, eu só encontro tristezas e lamentos... A pior coisa do mundo é a fome! (JESUS, 1914 a 1977)

Ao ler o mundo pelos olhos de Carolina, entre as catástrofes que a literatura de testemunho traduz, tenho convicção que a fome e a desigualdade social estão entre as mais violentas. Das necessidades que o momento atual exige, estou no seletivo grupo de privilegiados que não tem fome de comida. Minha fome é apenas de leitura.

Diferente de Carolina, que tinha a leitura e seu diário como fonte de energia para vencer a fome, hoje muitos não sentem vontade de ler porque a necessidade de comida é mais urgente. Fome de comida, fome de leitura, de dignidade, experiências de quem tenta ler o mundo, mas pode enxergá-lo amarelado. Como Carolina, a indiferença à dor do outro nos mostra que ainda temos muito a aprender como sociedade.

Das dúvidas do saber científico, uma certeza, a literatura nos alimenta e ensina a ler o mundo pelos olhos da revolta, mas também da resistência e da esperança.

Referências

Figueiredo, César Alessandro Sagrillo. Literatura do testemunho: a literatura da era das catástrofes. Disponível em: < https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/entreletras/article/view/8333> Acesso em 25 mai 2020.

INÁCIO, Adriana Elisa. Uma leitura epifânica do mundo: acontecimento e fratura no romance Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Diponível em<http://www.revistas.usp.br/esse/article/view/143474> Acesso em 26 mai 2020.

JESUS, carolina Maria de, 1914 a 1977. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: ática, 2014

MACIEL, Carolina Pina Rodrigues. Literatura de testemunho: leituras comparadas de Primo Levi, Anne Frank, Immaculée Ilibagiza e Michel Laub. Disponível em: < http://www.periodicos.usp.br/opiniaes/article/file:///C:/Users/Usuario/Downloads/124618-Texto%20do%20artigo-235675-1-10-20161220.pdf> Acesso 25 mai 2020.