Acordava sempre bem cedinho. Abria portas e janelas para deixar entrar o saudável ar fresco da manhã. Dava um beijo na mulher ainda sonolenta e corria para a “Padaria do Veiga” comprar o leite e o pão quentinho. Era assim que Pedro Flamenguista fazia todos os dias. Quando tinha tempo, antes de  se dirigir ao trabalho, ainda dava um pulinho no açougue do João, torcedor fanático do Vasco da Gama, visita que fazia quase sempre que o time do amigo perdia.

Naquela manhã, quebrou um pouco a rotina. Antes de ir comprar o pão, ligou a TV. Parou num desses programas que explora as desgraças alheias. Um homem tinha sido morto com 20 facadas durante uma bebedeira num bairro da periferia. Ficou chocado, conhecia o cara, em sua opinião, gente boa.
Lembrou-se do pão quentinho que precisava comprar, consultou o relógio, montou na velha moto e saiu rapidamente.
Padaria lotada, a sacola de pão na mão, já na fila do caixa achou de comentar o que vira na TV. Foi o bastante para que um dos interlocutores lhe falasse  de um outro assassinato ocorrido um dia antes no seu bairro. Saiu dali um tanto triste e foi ao açougue do amigo vascaíno. Lá, ao mencionar o que ouviu na padaria, foi cortado no meio da conversa por uma senhora, já de idade, que disse que a filha de uma amiga, da amiga de sua sobrinha, foi estuprada. “Coitadinha, tem só 12 anos”, relatou a senhora.
Pedro Flamenguista, que chegou na padaria com um “assassinato” visto na TV, saiu dali com um outro e mais a história do estupro da menina que escutou no açougue. Ficou arrasado.
Naquela manhã, o café em família não teve a mesma animação de antes. Pedro não tirava da cabeça o caso do cara morto a facadas, dos detalhes do assalto seguido de morte que o homem da padaria havia lhe contado e do caso do estupro da menor que soube no açougue. Tinha uma filha da mesma idade da vítima, e aquela história lhe deixou revoltado.
- Se fosse com uma filha minha, ia ao inferno atrás desse filho da puta, pensou ele.
No trabalho, o humor de Pedro não foi diferente do café da manhã em família. Estava visivelmente perturbado; muito mais depois que caiu na besteira de comentar com os colegas todos os casos catalogados pela manhã. Naquele instante ficou sabendo de um acidente de carro que matou uma família inteira numa das estradas da região e, de quebra, da história de um operário de uma empresa concorrente que morreu eletrocutado.
Fim de mais uma jornada de trabalho. Estava pensativo, macambúzio. Dois assassinatos, um estupro, um acidente de carro com a morte de uma família inteira e ainda o caso do cara que morreu eletrocutado. Era muito para um dia só.
A 500 metros de casa, por pouco não virava mais um caso a ser comentado na padaria. Uma caminhonete, dessas de rico, avançou a preferencial e quase lhe atropela. O veículo se arrebentou num poste e o condutor, com fratura exposta no braço direito e sagrando muito na cabeça, foi levado pelo SAMU para o Socorrão.
- Amanhã eu vejo o resto da história no noticiário, pensou Pedro.
Diferente dos outros dias, chegou em casa, à noitinha, e não disse uma palavra, o que deixou surpresa a esposa, que estava doida para ele lembrar do aniversário de 15 anos de casados.
Trancou-se no quarto. Disse que ia descansar o juízo por alguns instantes. Dormiu e acabou acometido de um pesadelo. Um botijão de gás explodia, a casa pegava fogo e todos da sua família morriam. Acordou mais perturbado ainda.
Passou o resto das horas calado. Não assistiu ao Jornal Nacional e muito menos à novela Império, aquela do comendador José Alfredo, que tem um  tórrido caso de amor com uma ninfa com idade para ser sua neta.
Perceber que a mulher “tinha feito salão” e estava mais bonita naquele dia passou anos luz da sua percepção. Calado estava, calado permaneceu.
Na hora da dormida oficial, não houve comemoração. O vinho que a mulher comprou, as velas aromatizantes, a lingerie nova e toda a sensualidade pretendida para aquela noite ficariam para o outro aniversário de casamento, ou outra data especial.
Foi a pior noite da vida de Pedro. Voltou a ter pesadelos. Acordou e não dormiu mais.
O dia começava a amanhecer, aproximava-se a hora de ir à Padaria do Veiga comprar o pão. Amanheceu também com uma vontade de comer uma talhada de cuscuz. Estava decidido: ia também ao mercado.
Abriu portas, janelas, olhou para a TV. Sentiu-se tentado a saber se o cara do acidente tinha ou não morrido.
Ligou o aparelho enquanto lembrava-se dos acontecimentos do dia anterior, principalmente do fracasso de alcova e da vergonha que ficou da esposa. Resistiu.
Naquela manhã, preferiu ligar num canal que falava de esporte e saúde.
Na fila do caixa da padaria comentou com um amigo  que tinha visto bem cedo na TV a notícia sobre a descoberta de um novo método para ativar o hormônio da felicidade. Saiu da padaria com três receitas de saúde e bem estar. Naquela manhã, o café em família foi mais animado.

Elson Araujo - Jornalista