Por mais traumático que possa ser, a violência se tornou um tema permanente no País. Seja na pequena, média e grande mídia, ou no ambiente acadêmico; nas redes sociais e botecos, bancas de revistas e de panelada, o tema virou uma ladainha. Depois da política e do futebol, é a questão mais discutida hoje pelos brasileiros.
Nos ambientes populares todos têm uma ou mais histórias para contar. Fatos que ocorreram com um amigo, com o amigo do amigo, com o vizinho, ou mesmo com o próprio contador da história. Não demora muito vêm logo as teses:
- A coisa chegou a esse ponto porque tem pouca polícia na rua - diz um.
- Nada! Tem que acabar com esse negócio de a Polícia prender e a Justiça soltar. O cara que assaltou meu vizinho só passou um dia na cadeia - arremata outro.
- Rapaz, tem é que matar esses pestes. Bandido bom é bandido morto - defende outra voz.
No senso comum, as principais “teses” apresentadas são essas citadas acima. O que não deixa de traduzir o sentimento das massas quanto à ausência do Estado Brasileiro quando o assunto é segurança pública. Um sentimento de descrenças nas instituições e revolta diante de tanta impunidade.
São situações que abrem espaço para o “justiçamento” privado, como o que o Brasil testemunhou recentemente no Rio de Janeiro quando um delinquente, depois de capturado por uma milícia, foi amarrado e torturado num espaço público.
Assim tem sido com muita frequência: se o Estado Brasileiro não cumpre com o seu devido papel, vêm as milícias e o faz do seu modo, provocando uma ruptura com todo o sistema normativo vigente.
O garoto do rio deu a maior sorte, já que na maioria desses episódios o que ocorre é execução sumária, fato que nos remete aos tempos medievais. Ali os criminosos eram punidos em praça pública num verdadeiro espetáculo de barbárie. Era assim que o Estado da época impunha sua autoridade, mostrava sua força e vingava privativamente a sociedade e autoridades ofendidas.
Tem um livro, de leitura obrigatória nos cursos jurídicos, chamado Vigiar e Punir, de autoria de Michel Foucault, que narra como se constituíam essas punições ou execuções públicas. Logo na abertura da obra, ele expõe a narrativa de uma sentença ambientada na França, em abril de 1757.
Nu, de camisola, numa carroça o condenado foi levado à porta principal da Igreja de Paris. Sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barriga das pernas, sua mão direita segurando uma faca com que cometeu o parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros consumidos ao fogo reduzidos a cinzas lançadas ao vento.
...O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite... (MICHEL FOUCAULT)
Assim como o condenado de Paris, o garoto do rio também foi despido e exposto publicamente, não pela figura do Estado, mas por milicianos pagos por comerciantes para proteger-lhes o patrimônio. Num Brasil que se diz civilizado, dominado por maravilhas tecnológicas capaz de, em segundos, tornar próximo o mais distante dos homens, é intolerável a ocorrência como a que teve como protagonista aquele garoto, um precedente muito perigoso.
Foi na esteira de atrocidades como essas, para se contrapor à cruel forma de punir do Estado absolutista da época, que o pensador iluminista Cesar Bonessana, o Marquês de Beccaria, aparece, em 1764, com sua célebre e sempre atual obra, Dos Delitos e das Penas, que se tornou, na avaliação dos penalistas, um marco da Escola Clássica do Direito Penal.
A obra provocou uma verdadeira revolução ao se insurgir e ao mesmo tempo propor formas mais humanas de aplicação das penas e se posicionar contra a pena capital.
Diante da ausência do Estado brasileiro é que vez por outra surgem e ganham força vozes que defendem a adoção da pena de morte como mecanismo para se combater o crime, o que já se provou que não resolve a situação.
Entende-se que se por uma situação atípica a pena de morte viesse a ser adotada no País, as sentenças teriam endereço certo: os milhares de excluídos do contexto social, que já nascem condenados a condições adversas de vida, privados dos bens mais elementares para uma vida digna, como saúde, educação, segurança e até a alimentação; carências essas que obrigam muitos a buscarem no crime a raiz da sobrevivência.
Infelizmente, ainda há quem argumente que só a pena de morte resolverá o problema da violência no Brasil e que esta seria exemplativa o bastante para coibir a brutalidade humana. O bom é que essa tese é refugada pela nossa Constituição.
Urge no momento o Estado brasileiro retomar o controle da situação e devolver a paz e a segurança que tanto clamamos.
*Elson Mesquita de Araújo, jornalista.
Publicado em Cidade na Edição Nº 14930
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