Pra começar, vamos bem do início, onde éramos apenas espermatozoides, brincando de ser feliz.
Numa dessas, eu já tinha cansado de ficar pregado em páginas de revista. Outras vezes, cansei de ficar jogado no chão, esperando a sorte me levar de volta pra casa. Não tinha seriedade na reprodução humana. Eu me via transloucado, ultrapassado. Todos os outros colegas passavam na minha frente. Bom, eu sabia o que acontecia e já ficava esperando a hora certa. Tinha um esperminha lá que era aleijado. Sempre pedia pra ir na frente. Quando ele chegou perto de conseguir o seu objetivo, ele pediu pra turma empurrá-lo, pra dar uma força. A turma gritava: "Agora vaaaai". E, pra nossa surpresa, ele falava: "Agoooora não". Depois que ele se foi, a gente entendeu. Ele caiu num ladrilho velho e, chorando, não quis mais voltar para o nosso convívio.
Às vezes, você pode escolher o óvulo certo. E foi o que eu fiz.
No princípio, era estranho. Ficava escutando um monte de gente ao meu redor. "Que barriga grande". "Se for menina, vai pagar os pecados todos hein?". Não entendia direito. Do nada, me chacoalhavam, acho que eram uns tapinhas. Zangado, eu chutava tudo. E o mais engraçado: enquanto eu chutava louco da vida, escutava risos e sinais de alegria! Olha que absurdo! Eu batendo de volta e, ao mesmo tempo, provocava mais gargalhadas! Vai saber, o mundo andava tão maluco naquela época já.
À noite, a calmaria. Dormia como um anjo. De longe, ouvia músicas boas. Sim, eu sabia o que era música na hora. Um som leve que se misturava com uma respiração gostosa e um cobertor humano bem diferente. Uma voz grave fazia com que eu identificasse quem estava falando comigo. Eles nem sabem que a gente sabe de tudo ali dentro. Depois de um tempo, aquele lugar quentinho começou a ficar pequeno. Eu já estava meio grande pra ficar ali. Nem sabia quanto tempo tinha que eu ficava perambulando, dormindo e recebendo só comida boa. Perdi a conta de quantas vezes falavam: "Quando vai ser, quando será". E dessas coisas eu não entendia nada. Um dia, sem querer, pisei num negócio meio mole, sei lá. Olhei pra baixo, tudo estava vazando. Lembrei do meu colega aleijadinho e achei que fosse ter o mesmo fim dele. Aí, tudo meio que se apagou.
Uma luz forte bateu no meu rosto. Um homem esquisito, todo de branco, me olhando com cara de idiota, me assustou. Chorei de medo, claro! E ainda mais quando veio aquela tesoura rasgando meu umbigo. Eu hein, que loucura ver o mundo. Nasci com o povo me assustando e me cortando. Enrolaram-me num pano.
Foi quando eu a via a primeira vez. Meus olhos estavam meio cerrados, difícil de abrir. Quando a vi, meu coração pediu mais. Queria algo a mais. Não sei explicar, mas eu acho que o amor me deu a luz. Tive a sensação de que os olhos dela me guiaram para o resto da vida. Não sabia como chamá-la. Até que escutei: "Diz oi pra mamãe, Phelippe". Bom, eu aprendi que meu nome se escreve assim tempos depois, escutando é mais bonito. Antes de falar mamãe, eu poderia chamar de amor. Não teria diferença, nem um destaque maior, ou menor. Simplesmente, puro, magnífico e belo. São nos momentos mais exatos de amor que reverenciamos Deus e suas criações magistrais. Pois a primeira pessoa que sentimos e vemos na vida é o amor, apelidado de mãe. E, no meu caso, registrada como Alda Olívia Moreira Duarte.
Ainda bem que meus irmãos não viraram página pregada. E tiveram a mesma sorte que eu tive em ter uma mãe perfeita, dentro de suas imperfeições. Eu te amo, minha mãe linda. Obrigado por ter me aceito como seu.

Phelippe Duarte
Cronista e poeta