Causo XVI - “Só aves na divisão dos bens”
Estamos vivendo uma época dificílima, com os problemas econômicos e financeiros se avolumando como num passe de mágica, da noite para o dia, transformando em um verdadeiro inferno a vida dos brasileiros, independente da classe social a que pertença. Por mais que os chefes de uma família – digo chefes porque na atualidade o seu comando é exercido de forma igualitária pelo homem e pela mulher – procurem equilibrar a economia doméstica, o déficit cresce igualzinho a uma bola de neve, e haja desespero diante de tal situação.
Nos comentários dos bate-papos em botequins e nas esquinas da vida, o tema é sempre o mesmo: os aperreios financeiros e as dificuldades econômicas. Mas mesmo diante deste quadro que poderia ser considerado desesperador, o povo brasileiro não perde a esperança em melhorar de vida, e vai enfrentando a situação até com uma certa dose de bom humor.
Um dia um amigo me procurou e revelou que estava tão desesperado, que se tivesse um revólver iria cometer uma besteira, e quando eu tentei lhe confortar, dizendo que o suicídio não valia a pena e era um ato de covardia, ele riu e me disse: “Que suicídio que nada! Eu ia era vender o revólver por dez reais, que é a quantia que estou precisando!”. Já um outro amigo me garantiu que a situação em sua casa está tão difícil - “Fartura total” Farta tudo!”, afirmou, que ao chegar em casa para o almoço pede à esposa: “Mulher, esquenta a comida!”, e ela rapidinho fica de cócoras em cima do fogão.
Mas nenhuma situação foi mais difícil, mais constrangedora como a de um outro amigo, a época recém-formado em Direito, e cujo nome, por uma questão de ética e de respeito ao profissional, prefiro manter no anonimato. Mas tenho certeza que ele, ao ler esta narrativa, vai dar estridentes gargalhadas, lembrando que é o personagem principal destas minhas mal-traçadas linhas.
Embora o fato possa parecer ficção, é a mais pura e cristalina das verdades. Aconteceu em uma das cidades do interior cearense, por sinal um dos mais pacatos, tranquilos e calmos, dos mais de cinco mil municípios brasileiros. Lá, ninguém escutava falar em briga, em confusão, roubo, furto, enfim, em nada que precisasse de uma intervenção policial e jurídica. A cidade era o que poderíamos chamar de um verdadeiro paraíso terrestre. E foi justamente para aquele local que o meu amigo, que vou chamá-lo pelo nome fictício de “Justo”, resolveu se estabelecer, tão logo recebeu o seu “canudo” de doutor advogado.
Já passados quase dois meses na cidade, sem arranjar um só cliente e com as dívidas do hotel onde estava hospedado se avolumando, o Doutor Justo foi informado por um funcionário do hotel que um certo casal, morador na periferia, vivia na mais completa desarmonia conjugal. À noite, deitado na cama à espera do sono chegar, ele lembrou-se da informação e comentou com os seus botões: “Vou visitar o casal, aconselhar os dois a se desquitarem, e na hora da divisão dos bens tiro a minha parte e ganho um bom dinheiro”!. Na manhã seguinte, logo cedo rumou em direção à casa do casal briguento.
Lá chegando, se apresentou como advogado, e de uma forma bem sutil provocou uma discussão entre o marido e a mulher, com ambos se agredindo mutuamente e afirmando em alto e bom tom que não mais suportavam um ao outro. Ao ouvir aquelas confissões, o advogado colocou em prática os seus conhecimentos jurídicos, falando sobre o desquite (que agora tem outro nome: separação judicial) e aconselhando os dois a se desquitarem. Ante a concordância dos dois, o Doutor Justo marcou uma reunião para o dia seguinte, no Fórum da Comarca, e à noite, no quarto do hotel, passou a fazer contas e mais contas do quanto iria ganhar naquela ação judicial. E depois de tantas e tantas noites mal dormidas, devido à preocupação com as dívidas acumuladas, ele conseguiu dormir tranquilo como um passarinho.
No dia seguinte, no local e horário combinados, lá estavam o Doutor Justo e o referido casal, reunidos para a “oficialização da desunião”. E com um sorriso quilométrico de orelha a orelha, o advogado faz ao marido a clássica pergunta:
“Quais são os seus bens?”.
“Não tenho nada, Doutor! Nadinha de nada”, respondeu. E quando o advogado perguntava se ele tinha uma casinha, um pedacinho de terra, uma vaquinha, uma galinha, enfim qualquer coisinha, ele simplesmente balançava a cabeça negativamente.
O advogado então imaginou que, como estamos vivendo uma época em que a mulher é o centro de tudo, consequentemente seria a esposa a proprietária do patrimônio da família. Então dedicou todo o seu sorriso e a sua atenção para a esposa, repetindo a clássica pergunta:
“Quais são os seus bens?”
“Não tenho nada, Doutor! Nadinha de nada”, respondeu, repetindo o gesto do marido, balançando a cabeça negativamente, quando o advogado perguntava se ela tinha uma casinha, um pedacinho de terra, uma vaquinha, uma galinha, enfim, qualquer coisinha.
Consciente que daquele mato não iria sair nenhum coelho, o meu amigo Doutor Justo deu uma grande demonstração do seu talento poético, realizando a ação do desquite em forma de poesia. Escreveu ele em um papel que lhe foi entregue pelo escrevente do cartório:
“Pena dos dois muito sinto/Por isto aqui lhes desquito”.
Olhou para o marido e escreveu: “Você fica com o seu pinto”.
E para a mulher o que lhe restava: “E você com o seu periquito”.
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