Estava lendo uma crônica da excelente Fernanda Torres, atriz, roteirista e escritora (cronista), sempre engajada nas lutas pela cidadania, publicada na Folha de São Paulo, na qual estabelecia uma espécie de interlocução com a também cronista, e das boas, Tati Bernardi. Não vou dizer que Fernanda é filha de Fernanda Montenegro, um dos monstros sagrados da dramaturgia brasileira e universal, tendo o talento da mãe atravessado as fronteiras com o filme Central do Brasil, e do grande ator Fernando Torres, que tive oportunidade de vê-los em belíssima apresentação no Teatro Maison de France, no Rio, totalmente lotado, na peça É..., de Millôr Fernandes. Que saudade desses grandes eventos teatrais. Não esqueço nunca da performance do talentoso Paulo Gracindo, no Teatro João Caetano, na estreia da peça Dr. Getúlio, de autoria de Dias Gomes e Ferreira Gullar. Aquela imensidão de teatro, com todas as suas cadeiras ocupadas. Uma grande festa da cultura cênica, que se encontra interditada pela burrice e pela crueldade da indiferença.

Nessa leitura me chamaram a atenção os três parágrafos iniciais, quando Fernanda, dialogando com Tati Bernardi, diz o seguinte: “Li, neste jornal, que você gostaria de voltar a escrever crônicas, mas o estupor da hora impede. Eu também, Tati, tenho saudades das minhas. (...) Foi a releitura de Rubem Braga que lhe fez notar o desvio. Amo Rubem Braga. Você conhece uma crônica chamada ‘Defuntos’, sobre a diferença entre os obituários da Alemanha e do Brasil? É das minhas preferidas.” Bem. Ser cronista é tomar partido. No amor, que acaba ou nunca acaba. Na vida, em que pesem as tristezas e as muitas felicidades. Nas coisas do mundo, tristes ou alegres. Amar Rubem Braga, para quem o conhece, não apenas das fotografias ou biografias, é uma exigência cultural, da crônica-poesia, da estética, da arte de ser arte, que atravessa todos os percalços, embora perseguida pela insensatez do autoritarismo. Ah! São tantas crônicas, que a leitura e releitura nos provocam permanente encantamento. O compadre pobre. A viúva na praia. Louvação. Recado ao Sr. 903. O jabuti. Borboleta amarela. Partilha. Um pé de milho. Conto de Natal. E tantas e tantas outras, que cada leitura nos impõe passar para apreciar a beleza estética da seguinte.

Não conheço a crônica “Defuntos”. Procurei incessantemente. Creio que se perdeu no meio do amontoado desses meus livros dispersos por todos os lugares, sendo o tormento amoroso de minha mulher a querer arrumá-los. Mas como arrumá-los? A bagunça, no sentido mais eufêmico que se possa dar a esta palavra, é a arrumação do que se possa entender por desarrumado.

Para perpetrar a minha vingança, por não encontrado “Defuntos”, fiz a releitura das eternas crônicas: Lembrança de um braço direito, Opala, O padeiro, Ai de ti, Copacabana e Recado de Primavera. Dei-me por satisfeito. Na certeza de que Rubem Braga foi um escritor inquieto, que sabia, com sutileza, denunciar as mazelas do mundo. Não estaria indiferente neste momento de pandemia viral e pandemia de tantas aberrações, grosserias, incivilidade, desamor à democracia e ao estado de direito e de desrespeito à cultura, como instituição a ser incentivada. O velho Braga morreu em 1990 e, como todo intelectual, que tinha consciência de cidadania ativa, sofreu perseguição do regime autoritário, passando a publicar as suas crônicas sob a égide de pseudônimos e empregar-se em agência de publicidade. Mas nos deixou um legado artístico que o imortaliza na galeria dos grandes literatos.

A indiferença é cruel. Lutar contra ela é uma exigência do viver com dignidade. Os valores culturais, em suas mais variadas manifestações, expressam o espírito de uma sociedade. Extirpá-los, pela indiferença, é assassinar a sociedade.

Gramsci tinha ódio à indiferença. Dizia: “- Odeio os indiferentes. (...) Quem vive verdadeiramente não pode não ser cidadão, assumir um lado. Indiferença é apatia, parasitismo, velhacaria, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.” Os Estados Unidos da América, o seu povo, têm dado uma lição histórica de que viver é tomar partido. O assassinato do homem negro George Floyd, estrangulado por um policial, despertou a cidadania oprimida. Diferente do Brasil, vivemos o surto da indiferença. Mata-se o negro e o pobre, e nada. O crime mais recente: João Pedro, um jovem de 14 anos, assassinado no interior de uma humilde casa, quando estava com os amigos. Até agora, nada. E nós, indiferentes. Num outro momento, um empresário rico - pelo menos, assim ele vituperava para humilhar o policial - aos berros, afirmava com prepotência que ganha por mês 300 mil reais, enquanto o policial ganhava uma merda de mil e poucos reais. Foi detido e logo solto. Se fosse um João Pedro, na favela, o desfecho seria o que todos nós conhecemos. E ficamos indiferentes.

Membro da AML e AIL.