Por isso cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós / Que somos jovens. Versos de Como nossos pais, obra-prima de Belchior. Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, gênio da música brasileira, que nos legou todos esses cantares eternos, que ficaram imortalizados na voz da também eterna Elis Regina. Como nossos pais é uma canção feita por Belchior no momento em que o Brasil vivia a parte mais sangrenta e cruel da sua história: a repressão da ditadura militar de 1964, que, sob os aplausos do nosso capitalismo conservador e da grande mídia, se estendeu por mais de vinte anos, cerceando os direitos políticos e as liberdades públicas de escolha dos nossos governantes, instituindo os senadores e governadores biônicos, eleitos por processo espúrio dos parlamentos estaduais, servis aos generais de plantão. E Belchior produz essa utopia poética: Viver é melhor que lutar. Mas alerta: Por isso cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós. Esse grande clássico é de 1976, quando o porão da ditadura matou o operário Manoel Fiel Filho. Belchior rebusca o tempo passado: Já faz tempo / E eu vi você na rua / Cabelo ao vento / Gente jovem reunida / Na parede da memória / Esta lembrança / É o quadro que dói mais. Ressalta esse vate cearense a lembrança do que fora e o perigo na esquina, com o sinal fechado pra todos nós.
Antes de seguir, algumas reminiscências. Pelos idos de 1975, cheguei a Imperatriz para ser advogado do INCRA, sendo lotado no Projeto Fundiário Imperatriz, órgão que, instalado nesta região, realizava a política de regularização fundiária. Não era bem uma política de reforma agrária, até porque prestigiava o grande proprietário de terras, o latifundiário. Ao chegar a Imperatriz, fui ao jornal O PROGRESSO, o pioneiro da comunicação impressa, ainda editado a quente, e iniciei a colaborar, semanalmente, escrevendo esta coluna, a Crônica da Cidade. E comecei a participar da vida da cidade, dando aulas em escolas, na Faculdade de Ensino Superior, depois incorporada pela FESM, e, quando implantada, na Universidade Federal do Maranhão, no curso de Direito. Como não poderia ser de outra forma, exerci atividade política, fazendo parte inicialmente do MDB, depois PMDB, com o acréscimo do P, em face da reforma partidária realizada pelo regime militar. Fui candidato a vice-governador em 1982. Arena e PDS dominavam o Maranhão, colonizado politicamente por grupos políticos, beneficiários da ditadura militar. Elegiam o diabo que quisessem. Havia as sublegendas, um desastre antidemocrático, patrocinado por essa turma que anda por aí se autointitulando defensora da democracia. A farsa é sempre a mesma.
Chegara a Imperatriz com experiência em jornal, a partir das oficinas. Fora repórter do Diário de Notícias, no Rio de Janeiro, e fazia revisão e elaborava textos de apresentação de livros para a Editora Edições de Ouro, hoje Ediouro.
Entrosei-me com a nova vida imperatrizense, trazendo as ideias da chamada cidade grande, mas respeitando, e muito, os novos amigos. Imperatriz ainda não estava contaminada pelo vírus deletério da televisão. Ouvia-se música, lia-se, discutia-se, escrevia-se. A minha biblioteca me acompanhava nessas andanças. Sempre uma trabalheira, mas necessária. Ah!, ia esquecendo, também os meus vinis, os bolachões negros. Ainda me estão comigo.
No Incra, tinha uma colega advogada, Dra. Cláutenes. Cearense, que sempre estava indo para sua cidade amada, Fortaleza. O seu marido também era de lá. Conversávamos, eu e ela. Sobre música e outros assuntos. Belchior ainda não tinha se projetado nacionalmente. Começava a fazer sucesso no Ceará com Mucuripe, música que fez com Fagner. Quem já se projetava era Ednardo, autor de Pavão Misterioso, tema da novela Saramandaia. Cláutenes, quando me falava de Belchior e Fagner, como grandes artistas, eu esnobava com João Vale. Sem conhecer Belchior, ainda lhe dizia que Fagner não era nome de cantor que se prezasse e muito menos de compositor. E ficávamos por aí. Ela, defendendo a beleza de sua cidade, Fortaleza, e a sua gente, e eu refutando com Araçagi, Olho d'Água e a nossa cultura popular, e, como reforço dos argumentos, o autor de Pisa na Fulô.
No ano de 1976, Belchior estoura Como nossos pais. Vem Mucuripe, com o lirismo de: As velas do Mucuripe / Vão sair para pescar / Vão levar as minhas mágoas / Pras águas fundas do mar / Hoje à noite namorar / Sem ter medo da saudade / Sem vontade de casar. (...) Aquela estrela é bela / Vida vento vela leva-me daqui / Aquela estrela é bela / Vida vento vela leva-me daqui. Depois, Paralelas e A palo seco, em que fala dos vinte e cinco anos, do desespero como moda em 76, e exalta o seu canto: Eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês. E em Alucinação, Belchior não está interessado em nenhuma teoria, mas a alucinação / é suportar o dia-a-dia.
Belchior constrói as suas canções, vencendo o passado, que é uma roupa que não serve mais. E, Na hora do almoço, emite o seu canto de protesto, das coisas sofridas do Ceará: No centro da sala, diante da mesa, / No fundo do prato, comida e tristeza. / A gente se olha, se toca e se cala / E se desentende no momento em que fala. Esse é Belchior, que é apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, e vindo do interior, para eternizar-se com seu canto torto.
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