Queria falar do meu avô. De repente, lá de longe, me veio aquela saudade, como se estivesse sentindo a sua presença ao lado da rede, embalando-me e contando histórias do seu Ceará. Sacudia, com muito carinho, a rede de um lado para o outro, até quando percebia que já não o ouvia mais. Dormia o sono da inocência, que acalenta toda criança. Também queria falar de Babalu. Não a música, que elevou Ângela Maria – a Sapoti do rádio brasileiro (alguém lembra?!) – aos píncaros do sucesso. Depois, regravada, no mesmo estilo, por Ney Matogrosso. A Babalu, da qual queria falar, é uma cachorrinha que sempre me recebe, balançando a cauda com incontida alegria, a uma velocidade que só a sua alegria pode dimensionar. É a Babalu de um diálogo pitoresco entre um adulto e uma criança. Dizia o adulto inquisidor, ao chegar da rua, estando Babalu, a cortejá-lo com os afagos da alegria: – E aí Babalu?! E a criança, em réplica imediata, responde: – Ela ainda não fala. Só late. E os risos tomaram conta desse inusitado e inteligentíssimo diálogo.
Queria falar do passado, já que meu avô não é passado. Aí me vem à lembrança um pensamento que insiste em ficar aprisionado no meu inconsciente: o passado não está no passado, está enterrado em nós, no presente. De outro modo, os historiadores seriam apenas uns passadistas incorrigíveis, a exercerem uma tarefa hercúlea de trazer para o presente o passado, como meros contadores de casos. Não. Não bem assim. O meu inconsciente teimoso reafirma: o passado não é o presente, está no presente. Não se repete o passado, por ser desnecessário; ele é o nosso presente. Meu avô é o meu presente encravado em mim em pedaços, um eterno presente, com as lições que a sua convivência me deixaram. O passado é como a Babalu da criança esperta. Não fala. Mas está sempre presente, a festejar-nos alegre com o balançar irrequieto das lembranças.
Gustave Flaubert, citada por Mario Sergio Cortella, em Não nascemos prontos – provocações filosóficas, escreveu: “Que grande metrópole é o coração humano! Para que irmos aos cemitérios? Basta abrirmos as nossas recordações; quantos túmulos!” E eu, enfaticamente, diria: quantas vidas!
Belchior, esse fenomenal artista cearense, nos fala do passado, ora como uma roupa velha que não nos serve mais, e o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer (em Velha roupa colorida). Mas, ao mesmo tempo, em Como nossos pais, essa canção repleta de poeticidade, que eterniza o seu talento, ele volta ao passado para dizer que não quer falar ao grande amor das coisas que aprendeu nos discos, uma vez que viver é melhor que sonhar, e o amor é uma coisa boa, mas a sua dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais. Esse cantador dos sentimentos do Ceará quer nos dizer, na força de suas canções, que o passado não é tão passado, uma vez que continuamos sempre os mesmos e vivemos como os nossos pais. Por isso, é que sempre seremos os rapazes latino-americanos, sem dinheiro no banco e muita ideia pra viver. Viver é sempre melhor que sonhar, mas o amor é que faz do sonho uma coisa boa.
Queria falar de tudo isso. Mas vou falar de Vinícius de Moraes. Sim. É dele que vou falar.
Deixou-nos em 9 de julho de 19880. Trinta e cinco anos de ausência física. Faz uma tremenda falta. O mundo perdeu um pouco da alegria do canto, ou da poesia cantada, com essa ausência de Vinícius. Mas, fico pensando. E concluo: não nos deixou. Me vem certeza, não espiritual, apenas poética. O poeta não morre. Sua obra tem a força de imortalizá-lo, fazendo-o presente. Sempre gostei de Apelo. “Ah, meu amor não vás embora / Vê a vida como chora, vê que triste essa canção / Não, eu te peço, não te ausentes / Pois a dor que agora sentes, só se esquece no perdão / Ah, minha amada me perdoa / Pois embora ainda te doa a tristeza que causei / Eu te suplico não destruas tantas coisas que são tuas / Por um mal que eu já paguei.” E segue por aí afora a súplica do poeta apaixonado para que o amor esqueça tudo no perdão.
Vinícius cantou o amor. Cantou e viveu com intensidade o amor. Certa vez lhe perguntaram: – O amor lhe pregou alguma peça? Nunca, respondeu. E acrescentou: – O amor tem sido perfeito comigo. E seus mestres quais foram? Respondeu:– O maior foi a mulher, e continua sendo.
Esse é o Vinícius. Sempre à frente do seu tempo. Eterno enquanto dure. Foi cronista. Fez cinema, teatro e música. Em tudo, nos versos que fazem o grande acervo de sua obra literária, foi sobretudo poeta, tendo bebido com vários parceiros, ou, como fazia questão de dizer, parceirinhos. Os mais conhecidos, com os quais fez grandes sucessos: Tom Jobim, Carlinhos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque, Baden Powell, Toquinho. Amava. O amor passava. Se separava. Pois, no seu eterno soneto-testamento, é Vinícius quem diz: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.” Viver, para Vinícius, sempre foi melhor que sonhar. Ele fez da vida uma poesia constante.
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