No domingo que passou tive a fugaz, porém muito agradável visita ao meu pedaço de retiro familiar, do meu amigo José Carlos Sousa Silva. Para os que não sabem: Sousa e mais o “e Silva”. Mas quem o conhece, é Sousa Silva, sem o “e” de ligação. E isso não mudou. Vem desde os tempos que nós trabalhávamos em oficina de jornal. Eu, como linotipista; José Carlos, ora como revisor, ora fazendo a primeira página do Diário Oficial, quando, no governo Sarney, nos idos de 1966, fora vendido na Praça João Lisboa, pelos jornaleiros, em frente à Farmácia Central, e em outros lugares. Lembro-me de uma matéria de capa (manchete do DO), cujo título dizia: Sarney Quebra os Grilhões do Subdesenvolvimento. Se não nesses precisos termos, era mais ou menos assim. Ficou para história pela criatividade da chamada, e não, deve ser dito, por ter caráter bajulativo. Não. Não era bem isso. Sarney, quer queiram ou não seus amigos, ex-amigos, ou inimigos viscerais ou ainda de ocasião, fez um dos maiores governos que o Maranhão já teve. O título da manchete do DO, dado por José Carlos Sousa Silva, à época, meu companheiro de turma da Faculdade de Direito do Maranhão, na Rua do Sol, dizia muito das grandes mudanças econômicas, sociais e políticas que se operavam em nosso Estado. A história, um dia, esclarecerá esses momentos que marcaram uma quebra entre o velho e o novo.
Mas deixamos Sarney de lado. O assunto não bem ele. Ele entrou meio que por necessidade histórica, de poder dizer que meu amigo José Carlos Sousa Silva é, sobretudo, e mais que sobretudo, meu irmão de grandes lutas. E de muitas noites indormidas. Quando tínhamos prova, ainda a ser realizada bem cedo, no velho prédio da Rua Sol, estudávamos durante toda a noite. Pedia uma folga para o meu protetor no Sioge, Zé Ferraz, e ele, como sempre, nunca o negou, prontamente atendia, e eu José Carlos, numa sala da Rua Grande, onde Sousa Silva se acomodava num cantinho, estudávamos até o raiar do dia. Cedo, por volta das seis horas, pegava o bonde, ia pra casa, tomava um delicioso banho, jogando no corpo sonolento a fria água do tanque, bebericava o café preparado pela minha tia Morena e, logo, me encontrava na sala de aula para fazer a prova. A vida fora, mesmo com todos esses obstáculos difíceis de serem superados, um eterno aprendizado. E com muito amor.
Vencidas todas essas turbulências, a vida teve a sua necessária continuidade. Certa vez, disse, e repito aqui: viver é um nunca acabar de ser. Não somos, estamos sempre sendo, embora não consigamos nos libertar do passado, sem sermos passadistas empedernidos. É um paradoxo. Mas pode ser uma verdade. No dia 2, Finados, fui visitar os meus que se foram do meu convívio. É sempre uma saudade que explode em algumas contidas lágrimas. Saudade daqueles que nos amaram e dedicaram parte de suas vidas a construírem a nossa vida. Lembrei-me de uma passagem de um texto que iniciei e não terminei. Dizia: “Na véspera, fui balançado na rede, onde me encontrava em sono profundo. O sono da adolescência, que não quer despertar. Não acordei. Disseram-me no amanhecer do dia seguinte: era o meu avô. Prenúncio da sua partida anunciada. Há muito anunciada. Naquela véspera, mais presente a despedida. Dias depois, partira, após a súplica da minha tia que se comprometeria a me criar.” Restou a saudade de toda uma vida. Naquele momento, ao ver o meu avô no leito, preocupado com o meu destino, aprendi a lição do amor e da solidariedade, que me foi por ele ensinada. 
Lendo Bauman (A Sociedade Individualizada), há uma passagem que esse filósofo fala do amor: “O amor teme a razão, e a razão teme o amor. Cada um tenta viver sem o outro.” E diz mais: “O mundo, visto pelo amor, é uma coleção de valores; visto pela razão, é uma coleção de objetos úteis. (...) Mas o valor é qualidade de uma coisa, enquanto a utilidade é um atributo de quem utiliza tal coisa.” Não tenho dúvida, Zygmunt Bauman está repleto de razão: o amor, por ser uma coleção de valores, humaniza o ser humano. Francisco de Assis, o homem e o santo de história rica e bela, encontrou a dimensão do amor, desprezando a riqueza, o fausto, que contaminavam os alicerces cristãos da Igreja, para amar aos pobres. Ou melhor: amar e compreender os pobres. Reconstruiu, com essa simples opção, os novos caminhos da Igreja. Quem sabe, seguindo essa premissa, Camilo Castelo Branco tenha chegado à óbvia conclusão de que “o amor é a primeira condição da felicidade do homem”.
Murilo Mendes, esse grande poeta, em boa hora sendo reeditado, canta todos esses sentimentos no poema Os dois lados. Fala do sonho, do amor, da janela, tão grato esse espaço para todos nós, ao nos dizer: “Deste lado do meu corpo / tem o sonho / tem a minha namorada na janela / tem as ruas gritando de luzes e movimento / tem meu amor tão lento / tem o mundo batendo na minha memória / tem o caminho pro trabalho / Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida / tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas / tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão, / tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.” Ah!, Murilo Mendes, evoquemos, pois, os “tambores da eternidade”, só assim é possível viver a vida “entre os dois goles de delírios”: do sofrimento superado pela ânsia de viver e da felicidade de amar infinitamente. Enfim, é possível fazer da vida um aprendizado eterno enquanto dure.