Um sinalzinho tão pequenino, que aparece aqui e acolá no curso da frase, com a nobre missão de indicar a ocorrência de uma pausa e de separar as palavras ou orações. Numa síntese (e logo a vírgula aparece após o fechamento deste parêntese), sem maiores arcabouços retóricos, a vírgula é um sinal de pontuação, que complica para alguns e descomplica para outros. Como regra geral, cada um põe a vírgula onde quer; outros, mais previdentes, seguem as regrinhas, que se encontram depositadas em qualquer livrinho de gramática. Lá está escrito, num título expressivo, letras graúdas, a nos chamar a atenção: - Como fazer o uso correto da pontuação. Logo a gente se encontra com alguns desses sinais. Uns quase vivendo no ostracismo dos textos, como se dá com o ponto e vírgula. Uma vírgula e um pontinho bem em cima. Escritores de fama faziam mais uso do ponto e vírgula do que da vírgula. É que, na dúvida, usavam os dois sinais. Frase curta, lá estava o ponto e vírgula, dando entonação à mensagem. Machado não deixava por menos. Não desprezava um ponto e vírgula. No conto A segunda vida, o bruxo do Cosme Velho recorre ao uso dessa pontuação: "- Tem razão; depende das circunstâncias." Ou: "Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava um milheiro." Ora, todo mundo sabe que gosto de Machado de Assis. Cito-o obsessivamente, mas não suporto o uso repetitivo dos seus pontos e vírgulas. Alguém, defensor do bruxo, diria: - É o estilo! É o estilo! E eu replicarei: - De fato, é o estilo. Por que exorcizar o criador da Missa do galo? Gostemos ou não, as vírgulas e os pontos e vírgulas não conseguiram obscurecer a beleza estética da sua narrativa.
Mas voltemos à vírgula. - Ela é necessária?, pergunto, apreensivo. Penso que sim, embora alguns cogitem que não. Chegam mesmo a afirmar que, num futuro tão próximo, vamos deixar de usar a vírgula. Será esse pequeno sinal, com a crueldade dos sádicos, cassado dos textos, literários ou não. A princípio, confesso não acreditar nesse fim radical, espécie de assassinato da vírgula. Sim: assassinato! E me pergunto? - Como ficará o texto sem vírgula? Direto, sem uma mísera pausa. Comprido como um rio manso, que segue sem quaisquer obstáculos na sua trajetória. Um discurso seco, destituído desse tracinho quase insignificante, que fica no meio das palavras, mas que consegue dar alguma clareza ao sentido do que se pretende dizer. Ah!, direi eu, do alto da minha inconsolável resistência: - Bendita vírgula, que já me salvaste de alguns atropelos, não raras vezes,quando necessitei de construir uma frase longa, aliterada, cheia de imagens, e que serviste de amparo, uma espécie de muletinha para que fosse dada compreensão à mensagem, porquanto, de outra forma, o leitor ficaria perdido num labirinto das incompreensões. Ah!, bendita és tu, louvada vírgula! Quantas vezes tive que a ti recorrer, como se tu fosses o fio de Ariadne, para sair desse labirinto e chegar são e salvo ao final da pungente frase.
Com toda essa retórica defesa, recheada de um sentimento de perda, dizem que a grande Gertrude Stein considerava as vírgulas "servis e sem vida própria". Ou seja, queria afirmar: a vírgula existe por existir e, como serviçal de quem escreve, aparece no texto, sem dar a ele qualquer brilho, sendo apenas um acessório de segunda ou terceira categoria. Felizmente, há um escritor e ensaísta inglês, de nome esquisito e sem vírgula - Pico Yier -, árduo defensor da vírgula, que assumiu a linha de frente de combate, para sustentar, com a veemência dos entendidos, que "parte da beleza da vírgula é que ela oferece um descanso, como na música", constituindo-se "numa pausa que dá à música uma forma melhor, uma harmonia mais profunda". E conclui que "sem a vírgula, nós perderíamos as nuances e os subentendidos, e acabaríamos gritando em caixa alta uns com os outros". Taí um sujeito que sabe das coisas. A virgula agradece penhoradamente a sua defesa. E olha que já se falou mal da crase, cujo indevido uso serviu para reprovar muito gente boa. Mas o trema, em fase de extinção, recebeu um tratamento poético dado por Lago Burnet numa crônica que publicou no Diário de Notícias, em que o considerava chique. A reforma não se compadeceu desses dois pinguinhos e lhe deu uma bordoada. Quem quiser ficar tranquilo, que fique, porém, cuidado, sem trema.
Quando dava aulas de gramática, para me ajudar a ganhar o pão de cada dia, utilizava um livrinho de bolso que tratava especificamente sobre vírgula. Lá se contava uma história, para valorizar essa pontuação e dar-lhe o ar de necessária. A história é a seguinte: num reino, um indivíduo fora condenado à morte. Encaminhou, apreensivo, o seu pedido de clemência ao soberano. O rei examinou o pedido. Consultou os seus conselheiros mais próximos. Todos foram favoráveis à execução da pena. Sua majestade deu o seu veredicto contrário. Entregou a mensagem para o servo levar ao tribunal do povo com os seguintes dizeres: EU NÃO CONDENO. No caminho, o servo resolveu bisbilhotar a mensagem. Abriu-a. E concluiu que o rei havia se esquecido da vírgula, acrescentando-a: EU NÃO, CONDENO. A execução foi realizada. A vírgula indevidamente usada pelo servo matou o sentenciado. Moral: muito cuidado com a vírgula. Na dúvida, deixe como estar. Nem sempre é possível viver sem ela; o ponto sem ela resolve todos os nossos problemas, até mesmo para terminar esta crônica. Portanto, ponto final!
Comentários