Primeiro ato da tragédia:
“Era Semana Santa, e uma ação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) aterrorizava o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Quando policiais cruzaram com um grupo de homens armados na Rua 2, teve início mais um episódio de guerra que domina o morro. Os tiros anunciavam, às quatro da tarde da quarta-feira, o fim prematuro da Quaresma. Quando silenciaram, já na quinta-feira santa, tinham calado também quatro vidas. Entre elas a do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, que estava na porta da casa quando levou um tiro de fuzil na cabeça. Foi assassinado por um policial, que virou as costas sob a pecha de ‘covarde!’ e sob o choro desesperado de uma mãe.”
Segundo ato da tragédia:
Elizabeth de Moura Francisco, de 41 anos, também estava em casa quando foi baleada. Era funcionária de uma creche no alto do morro. Sua filha Maynara, de 16 anos, acabou atingida no braço. As duas foram levadas para o hospital às pressas, mas só a menina voltou para casa. O jovem Mateus Gomes de Lima, de 18 anos, foi executado na Rua Canitar, numa troca de tiros em que o adolescente Davyson Monteiro da Silva, de 15 anos, também acabou baleado, mas não resistiu aos ferimentos. Já Rodrigo de Sousa Pereira, de 24 anos, nem chegou a receber socorro. Levou um tiro na cabeça e permaneceu estendido no chão, com o sangue melando a sola dos coturnos e dos chinelos dos moradores que se aglomeraram em sua volta.”
Afirma a estatística que 70% dessas mortes violentas, com característica de execução (tiro na cabeça) são policiais militares, sob a justificativa de combater o crime, que se alastra de forma incontida em todas as sociedades do mundo. As duas cenas acima estão minuciosamente descritas, e com outros detalhes mais horrendos, numa matéria de fundo da revista Super Interessante, edição 346, de maio de 215, publicada sob o título Já existe pena de morte no Brasil. O texto investigativo traz alguns dados que abalam a consciência de qualquer cidadão, ainda que semicivilizado. Vejamos: a cultura do extermínio faz parte do combate ao crime e se origina da época da ditadura militar, ganhando corpo com atuação do esquadrão da morte, comandado pelo famigerado e notório delegado Sérgio Fleury; a redemocratização não teve força de mudar essa conduta belicosa, que se alastra pelo país inteiro; dentro das corporações militares existem grupos de extermínio, formados para vingar a morte de algum companheiro de farda, como ocorreu recentemente com a chacina de São Paulo, com o assassinato de 19 pessoas inocentes, cuja investigação resultou até agora em nada; os policiais mais novos são os mais contaminados por essa cultura, porquanto prevalece a impunidade, uma vez que as investigações são realizadas pelas ouvidorias da polícia e os julgamentos resultam em absolvição dos agentes policiais, sob a justificativa das excludentes de criminalidade, como a legítima defesa; esses assassinatos são celebrados entre os policiais, que se vangloriam entre si como se estivessem numa guerra e fossem elevados à condição de herói; o policial, que mata, é valorizado pela corporação; todos os artifícios são utilizados para encobrir esses crimes hediondos – e ainda mais hediondos porque praticados por agentes do Estado -, como fazer uso de toucas de ninja, despejar os corpos em cemitérios clandestinos, alterar a cena do crime, para que nada do ocorrido venha a público, como se deu com o caso Amarildo, ou forjar ser a vítima criminosa.
Nesse ritmo dantesco, a violência, de lado a lado, vai se alastrando como um vírus, cuja vacina profilática para combatê-lo não pode ser a violência praticada pelo Estado, o qual existe para pacificar e não para matar.
Em cima dessas práticas e por essas práticas, criou-se a ideia errônea e imbecilizada pela mídia sensacionalista, mas admitida por muitos, até com algum conhecimento planfetário, de que bandido bom é bandido morto. Nessa trilha, pavimentada por sangue e vidas, de criminosos ou inocentes, o julgamento do infrator ou não é procedido em poucos segundos, a condenação é imediata e execução é realizada na rua, na porta da casa humilde do barraco, em presença da mãe, dos parentes, na sua maioria negros, na claridade da luz do sol ou da lua, ou, o que é pior, às escondidas, com o uso criminoso de subterfúgios para que o crime não deixe qualquer rastro. Essa não é a função precípua e constitucional do Estado. A violência é sempre geradora de violência. Vem-me a pergunta: o que fazer então? A missão de todos nós e de todo sociedade é imensa. Não tem limites. Poderia responder: amar ao próximo. Seria a uma resposta de uma simplicidade cristã. Dar a outra face, como também ensinou Cristo, repugna aos beligerantes, que odeiam pacifistas como Gandhi. As respostas são muitas e dependem de todos nós. Mas, uma certeza: matar apenas para matar não é a resposta. A polícia do Distrito Federal é a que age com menor índice de letalidade, não seguindo a lógica do confronto ou da cultura do enfrentamento. Pode ser esta uma das repostas. As outras nos impõem a todos nós a responsabilidade cívica de mudar a sociedade.
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