Aureliano Neto*

A maior vítima da prática de um crime é a sociedade. Essa é uma conclusão que, em si, não traz nada de novo, porquanto de uma obviedade primária. Apenas constata um fato social, a ter reflexo na fenomenologia jurídica, em vista da necessidade de ser erradicado ou amenizado o ilícito pelos instrumentos legais de prevenção ou repressão sociais. O delito, forma mais grave de transgressão da ordem jurídica, quer se queira ou não, faz parte da vida em sociedade. Durkheim, em Las reglas del método sociológico, elucubra o entendimento de que "o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre uma função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a sociedade precisa". Não se quer dizer que essa premissa se revista de verdade absoluta. Não é bem assim. Mas implica afirmar que a criminalidade é um fenômeno, ínsito no âmago da sociedade, que se anormaliza nas várias formas de violência que se apresentam e perturbam o convívio social. Isso porque, primeiramente, inexiste sociedade perfeita, imune ao crime, de outro modo, ter-se-ia uma utopia, e, em segundo lugar, serve esse malefício social de causa para que se busquem melhorias nas relações sociais, na medida em que as instituições procuram se atualizar e fortalecer no combater à criminalidade, aperfeiçoando as várias instâncias de convivência social, regulando-as.
Concedeu-se ao Estado a função jurisdicional de equacionar os conflitos, punindo o culpado ou absolvendo o inocente. Nisso está a essência do julgar, como corolário do estado de direito. Punir ou não punir é uma decorrência da atividade estatal, que, examinando as provas produzidas pelo órgão acusador, julgará a ação promovida contra o acusado, acatando ou não os seus termos. Em contrapartida, milita, como garantia do réu, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência, preceito consagrado em qualquer carta republicana, ainda que de viés totalitário. Enfaticamente, isso quer dizer que a inocência não precisa ser demonstrada por quem está sendo acusado, uma vez que, no foro de uma sociedade civilizada, onde prevalece o devido processo legal, não há responsabilidade penal prévia. A ação se instaura, o processo é deflagrado com trâmite e previsão procedimental no ordenamento jurídico, a negarem, pois, a figura repugnante do juízo exceção e do julgamento antecipado, sem que a defesa seja amplamente realizada, as provas produzidas, contraditadas e examinadas com total isenção de quem julga. E, como decorrência, o juízo valorativo deve ser expresso, com fundamento nelas, para que se chegue à conclusão condenatória ou absolutória. Se assim não for, passa-se a ter a torpe figura do justiçamento, à moda primitiva (Barrabás ou Jesus?, perguntava Pilatos), que rememora a fase negra dos ordálios, quando o condenado sequer tinha ciência de quais os motivos que o levaram a receber a tão grave punição. Dumas (pai) tão bem retratou essa espécie de justiça em O Conde de Monte Cristo, quando uma reles e infundada acusação se transformou numa cruel pena carcerária.
À justiça pública, firmada no devido processo legal, repugna o julgamento com base na presunção de culpa. A prova, a ser produzida e examinada, é o sedimento de toda decisão, que venha a resultar em condenação ou absolvição. O Direito Penal do passado, refletido na vingança privada ou de sangue, se encontra, há muito sepultado. Ou pelo menos assim se presume. Já houve época, felizmente apagada na memória do tempo, em que contra o infrator (ou mesmo o suposto infrator) havia uma reação grupal, onde se buscava, a qualquer preço, a sua punição, bastando uma mera acusação formal ou mesmo informal. As normas repressoras se confundiam com o sagrado. A conduta representava uma ofensa ao deus, um totem erigido pela sociedade grupal, que, ofendido, exigia uma reação de todo o grupo contra o ato do indigitado infrator.
Assim, era permitida a vingança, instrumento de defesa a caracterizar a autotutela. O sangue lavava a honra ofendida, eis entendimento enraizado culturalmente na prévia consciência condenatória das pessoas. A sanção dependia dos interesses grupais do suposto ofendido. O talião foi um grande avanço: dente por dente, olho por olho. Estabeleceu-se, assim, o cânone da proporcionalidade entre o delito e a pena, fixando-a na pessoa do acusado, não mais alcançando o grupo social de que fazia parte.
Nos tempos atuais, pego os jornais e dou de cara com duas notícias, que me fazem lembrar da vingança privada. No primeiro caso, consta o assassinato de um jovem por facadas, e os seus amigos saem em busca do autor do homicídio e, substituindo o Estado na função punitiva, fazem justiça pelas próprias mãos, lesionando o ofensor quase à morte. Num outro caso, o pai, um policial militar, ao ter seu filho assassinado, mata um jovem como ato de vingança do filho, apenas pelo fato de que era amigo da pessoa que matara o seu filho.
Já no eixo Rio/São Paulo, não há um só dia em que a polícia não mata três a cinco (ou mais) presumíveis infratores ou inocentes. Instituiu-se o processo sumaríssimo, sem formalidades, para proceder ao julgamento, à condenação e à execução de supostos delinquentes. Sem maiores subterfúgios, é o coroamento da pena de morte, caracterizada pela punição vingativa, sem a necessária previsão constitucional. Do outro lado, ao seu talante, os infratores aproveitam essa espécie de concessão pública e assassinam os policiais. Deflagra-se a vingança privada numa afronta ao estado de direito, inserindo-se no sistema a cultura da lei do mais forte. Julgar, condenar ou matar, em afronta ao ordenamento jurídico vigente, representam práticas de uma selvageria primitiva que nega todos os valores conquistados pelo mundo civilizado. Essa exceção, infelizmente, está a virar regra.

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