Aureliano Neto*

Amaral é o seu nome. Orlando Ferreira Amaral, como foi batizado e registrado num daqueles livrões do cartório da localidade aonde veio ao mundo. Não se lembra mais onde. Sabe apenas que foi feito o registro. 79 anos de idade. Veio de longe no tempo, enrugado pela vida. Acorda antes de o sol nascer. Cedo, e acentua com o vigor da idade: - Bem cedo, às 4 horas da manhã. Liga o seu rádio de pilha numa das estações de AM ou FM. Toma conhecimento das primeiras notícias do dia. Prepara o seu próprio café da manhã. Tempera-o, deixando bem adocicado. É assim que gosta. Nem sabe que existe diabetes. Deixou o cigarro a conselho médico. Depois de muitos anos de vício, começou a sentir dificuldade respirar. Um incômodo no peito, disse ao doutor. O médico do SUS, com quem se consultou num prédio de paredes toscas e desgastadas da avenida, que não mais se lembra onde fica, mandou que fizesse um exame de raios-X. Olhando a chapa, sob o foco de uma luz forte e clara como neve, disse-lhe sem denotar exigência, mas como recomendação, que deixasse de fumar. Com dificuldade, hábito antigo, foi o que fez. De vez em quando, transgride a recomendação. Não diz a ninguém. A saúde é sua, pensa. A vida também, justifica-se quando pensa sobre o tempo vivido. Mas, embora não tenha medo da morte, quer continuar vivendo. É bom viver, trivial pensamento que sempre o assalta.
Logo no levantar, após sorver alguns goles de café, acondicionado numa tigela de estanho (diz que fica mais saborosa a rubiácea fumegante), veste uma espécie de uniforme e sai de rádio na mão e a lanterna na outra, a iluminar o longo caminho que terá que percorrer. São dez quilômetros de limites da reserva florestal. Amaral é o guardião, para evitar que intrusos causem danos à flora e à fauna. Vive e trabalha no local há trinta e cinco anos. Tem vida de quase ermitão, porque a solidão do mundo tem a presença de sua mulher que não sai do seu lado (e os filhos também). Companheira inseparável, costuma alardear para as pouquíssimas pessoas com as quais aleatoriamente mantém efêmeros contatos. São mais de trinta anos distante do mundo. Desse mundo nosso, dos celulares, da televisão, dos shoppings, das avenidas e seus excessos de veículo. Amaral está imune a isso tudo. Não faz questão de tê-los. A casa é iluminada pela luz de velas. Há mais de trinta anos não faz uso de energia elétrica. É a luz do sol, a claridade da lua e a iluminação de velas. O rádio e a lanterna de pilhas. O mundo de Amaral nada tem a ver com esse que nos circunda. Vive afastado de todos os seus tormentos e prazeres. Mas não rejeita as coisas do mundo. A família o acompanha nessa bucólica vida de característica excêntrica. A sua morada é uma floresta tropical de quase 8.000 hectares. Não há vizinhos num raio de quatro quilômetros. O chuveiro onde toma banho é de água fria, aquecida no fogão. Além da mulher Lourdes, vivem na mesma situação a filha Marília, de 47 anos de idade, e o filho Marco Aurélio, de 46. Lourdes, a mulher, pouco sai de casa. Faz a comida no fogão a lenha, onde aquece a água para o banho. Não há chuveiro elétrico. O banho é com água fervente, esquentada no velho fogão a lenha. Amaral não tem televisão, e não sabe o que é telefone celular. Mas sabe que existem computador e internet, conforme soube pelos poucos interlocutores. O mundo de Amaral não é excêntrico, como se deduz à primeira vista; o mundo de Amaral é apenas outro. Assim ele se dedica, como um sacerdote vocacionado, à vigilância do Parque Florestal Cantareira, localizado a dez quilômetros de São Paulo, onde vive, sem fruir as benesses da civilização, desde 1972. Amaral, antes de morrer para mundo, vive no paraíso da natureza.
Amaral, na sua simplicidade, compreende tudo. Sabe o quanto lhe faz falta a energia elétrica, que o priva, de ainda bem cedo, quando levanta para iniciar as suas atividades rotineiras, de fazer uso da água quente, ou, ainda, de ter uma geladeira. Porém, não entende quando as pessoas o indagam como é viver sem televisão. E ele responde, replicando a curiosidade: - Como é viver com televisão? Tem como resposta algumas explicações que não o convencem. Como não morre de amores por essas novidades, pega a sua lanterna numa das mãos e o rádio de pilha na outra e sai percorrendo uma trilha, ainda sem qualquer iluminação do sol, com a atenção voltada para o sussurrar das árvores que, com a passagem forte do vento, conversam entre si. E elas se balançam de um lado para outro. Abraçam-se, aconchegam-se. São cenas de amor verdadeiro que se repetem dia a dia. Amaral enternece-se. As folhas que dão a sombra de que tanta necessita para o descanso, além do abraço fraterno entre si, fazem um pacto da solidariedade, quando secas, caem, logo são substituídas por outras, verdes e alegres, mais amplas e vivas, a receberem os pingos do orvalho e as gotas das chuvas, sendo aquecidas pelos raios do sol. Esse é o mundo de Amaral. Longe dos campos de futebol. Distante da crueldade da agressão das torcidas. Sem o barulho ensurdecedor do asfalto e dos assaltos. E sem o cotidiano da morte. Só vida. É um homem fora do tempo, mas vivendo integralmente o seu tempo. Como seria o mundo se fosse povoado por tantos Amarais? Não tenho resposta. Mas se impõe uma confissão duvidosa: seria maravilhoso amar e viver. Já que não é assim, nem será, louvemos por todos os rincões desse planeta o nosso Amaral.

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