Era um dia de domingo, não muito diferente de um outro domingo qualquer. Pelo menos do anterior, em que, com pequenas mudanças, segui a mesma rotina. Mas, num dia de domingo, com ou sem chuva, no cair da noite, é bom dar aquela saidinha para tomar um café, acompanhado de uma gostosa tapioquinha, tradicional ou não. E conversar. Jogar muita conversa fora. Depois, apague-se da memória, já um tanto falha pelo tempo de uso, o que foi dito. O prazer é naquele instante. Ali, no momento do café e do encontro. De tudo um pouco. Terminantemente proibido falar bem da vida alheia, que ninguém é anjinho para elogiar essas virtudes que andam por aí tão desgastadas, porém escondidas pelos fáceis encômios bajulatórios, sobretudo se a pessoa é autoridade e, ainda mais, com chefia juramentada. Aí, amigo meu, haja puxamento de saco. E, se não tiver saco, arranja-se um daqueles bem grandes, pesado de carregar, mas fácil de ser puxado. Em resumo, conversa de café é condimentada pelo sabor da rubiácea, pelo gostinho da tapioca e por profundos conhecimentos de coisa nenhuma. É de muito papo. E risos.
Naquele domingo, saí para o tradicional encontro. O trânsito, pasmem amigos, não estava tão intenso. Mas estacionar, presumi, era a grande dificuldade. As nossas cidades estão assim, assim. Cheias de assins, assins. Têm mais carros que gente. Estou prevendo, para não muito distante, que teremos a greve dos carros, por falta de estacionamento. Se o trânsito, mais das vezes, é caótico, estacionar é um drama nosso de cada dia. Ah!, vem o sonho impossível, assim mesmo sonhado, de ter um transporte público decente. Aquele que a gente entra no veículo, senta confortavelmente, curte o ar condicionado e segue tranquilamente, sem grandes atropelos, até o ponto final de chegada. Desce sem tumulto e vai para o trabalho ou para casa. Oh!, bendito sonho!
Nesse domingo, passada aquela esquina, onde fica um sinal luminoso que ora funciona ora não, amontoavam-se em filas algumas centenas de veículos, de todas as marcas. Parecia exposição de concessionária para oferta de promoções, as mais atraentes e ilusórias. Os potentes faróis iluminando toda a extensão da avenida. Só podia ser acidente, precavidamente, pensei.
Os carros se deslocavam lentamente, premidos pelo espaço exíguo e pela curiosidade dos condutores, só sendo satisfeita ao parar para ver o que acontecera. Não era um cair de noite iluminada. Sem lua, com algumas estrelas, que piscavam na distância do infinito. Porém, havia a iluminação dos carros e dos postes.
A cena: debruçada no chão e abraçada a um corpo, a mulher chorava o desespero da morte. Pensei, ante a visão daquela aflição: talvez o morto fosse o filho, sem vida, nos braços daquela mulher. As lágrimas da dor da perda se misturavam ao sangue que ainda brotava daquele corpo inerte, apertado nos seus braços. Em torno, pressentia-se que as providências estavam sendo tomadas. O local fora isolado. Um policial adotava a postura de comando, apitando freneticamente, desviava o trajeto dos veículos, facilitando o curso do tráfego. Alguém pergunta para alguém alguma coisa. A mulher sofrida, com o cuidado do carinho, deposita o corpo numa padiola, que, como por encanto, saiu de uma ambulância, que acabara de chegar, com suas luzes vermelhas em círculo de advertência. Um homem vestido de branco examina o corpo inerte. Alguém tomava notas em uma caderneta. Fotografias eram tiradas numa sequência interminável. Sentada, no outro lado da avenida, via-se uma pessoa de ombros arqueados, com a cabeça sobre os joelhos, demonstrando uma tristeza insondável.
Por ali, nesse domingo, a tristeza da fatalidade, reforçada pela dor da morte, essa tragédia inevitável. Em volta dela, compondo a trágica cena, a volúpia dos curiosos.
Foi assim, dizia um mais exaltado. Não, não foi bem assim, ponderava outro, cofiando a espessa barba. O carro veio dali, e ele saiu dali, acentuava com veemência a voz de uma testemunha, que se dizia conhecedora da verdade. E o motorista?, perguntava um curioso, que acabava de chegar à cena fatídica. Não sei, foi a resposta dada de supetão por um garoto imberbe.
Uma certeza: convicto, disse o médico, guardando o aparelho que usou para auscultar a vítima, o morto está morto. Nada mais pode ser feito. A mulher ficou a olhar, impassiva, a retirada do corpo amado e chorado. Aos poucos, o trânsito foi se abrindo, os carros em velocidade costumeira, e a vida continuou a ser vivida na sua trágica normalidade. E mulher, soluçando a perda do morto, era a única certeza que ficara daquela tragédia. E saía dali, naquele domingo, caminhando na solidão de suas lágrimas.
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