Podia ser qualquer dia. Mas foi um dia de domingo. Não tenho ideia do que se comemorava nesse dia. Alguma data festiva. Caía uma chuva bem fina. Dessas que molham pra valer. As nossas ruas e avenidas estavam cheias de carro. E de água. Tanto indo quanto vindo. Alguns com pressa e outros pouco ligando pro tempo. O sinal fechou. De repente, vi aquele rapaz. Sem camisa, ainda moço. Com aparência de velho. Tenho acompanhado, dia sim, dia não, a sua morte, como processo de deterioração não só física, mas moral. Quando o encontrei na primeira vez, nos mesmos semáforos, vestia-se com algum esmero: de short e bermuda. O seu rosto ainda não expressava a tragédia de sua vida. Corria de um lado para o outro, com um sorriso envergonhado, pondo-se a serviço dos motoristas para limpar os para-brisas dos veículos. Uma tarefa ingrata, porque pouco receptiva. Esse rapaz, agora com o rosto corroído por uma velhice precoce, deve ter uns vinte poucos anos. Nesses últimos anos - 2018 a 2019 - envelheceu e emagreceu espantosamente. Usa apenas um short roto. Cabelos desgrenhados e pés descalços. Os dentes apodrecidos. A morte o vem dilacerando a olhos vistos. Não sinto pena dele. Não é bem isso. O que sinto é uma revolta de ver esse jovem se acabando na via pública. Já não tem ânimo para exercer a sua rejeitada função de limpador de para-brisas. Pede. Apenas pede, com gestos de súplica. E recebe como resposta o não. Mas não o simples não. É um não enfezado, de quem tem aversão aos seus pedidos. Tratam-no mal. É enxotado, como se fosse um cachorro piolhento, ou leproso. Esse rapaz integra o mapa miserável do outro Brasil, que vemos, mas não queremos ver. Drogado, não é amado. Não sendo amado, droga-se.

Nesse dia que o vi, ele sobraçava os esquálidos braços, tiritando de frio, e apenas, a distância, dentes arreganhados pela fome, pedia. Diante de mim contemplava a parte cruel desse nosso imenso Brasil. Isso me faz chegar à óbvia conclusão: a miséria invadiu as nossas ruas, as nossas belas avenidas, os nossos domingos, e, embora apáticos quanto a esse drama, as nossas vidas. Por mais que se queira ser omisso, essa parte do Brasil, representada tristemente por esse rapaz e por muitos outros, nos desafia a fazer alguma coisa. O quê, por exemplo? Pelo menos, comentar, como o faço, contestar, como outros fazem, ou prestar socorro ao pobre miserável. A omissão é uma espécie de tortura social. Esse pobre rapaz dilui a sua vida como se fosse, e é, protagonista de um espetáculo tétrico, para satisfazer a volúpia dos espectadores de sempre.
No próximo domingo, irei ao habitat desse rapaz. Não sei se o encontrarei por lá. Talvez sim. Ou talvez tenha encontrado o seu anjo da guarda protetor. Se encontrou, não me preocuparei mais com ele. Mas não o olvidarei.
Num cenário menos torturante, chegou a mim uma outra parte mórbida do Brasil. Fazia tempo que não a via. Trazia às mãos uma caixa de madeira. Uma caixa de engraxate. Perguntou-me se queria engraxar. Disse-lhe que não. Insistiu. E argumentou que as minhas botas estavam sujas. Bem. Quanto?, quis saber. 5 reais, disse o menino. Resolvi apostar na sua habilidade técnica. E, de imediato, lembrei-me que se tratava de uma criança, que devia ter uns 12 anos de idade, a trabalhar, e ainda mais num dia de domingo. Dia do sagrado descanso. Disse a ele que deveria estar em casa brincando ou preparando os deveres da escola da segunda-feira. Respondeu: - Não estudo. Ajudo em casa engraxando sapatos. Aceitei os seus serviços. Terminado o trabalho, recebeu os cinco reais e mais uma gorjeta. Saiu alegre, assoviando uma musiquinha, num retrato trágico do nosso cotidiano.
Esse garoto-engraxate também representa o outro Brasil. O Brasil da criança que se faz adulto, participando da força de trabalho doméstica. Ainda assim, marginalizado. É, pois, o produto de um processo educativo pragmático. Aprende roçar, indo pra roça; aprende pescar, indo pra pesca; aprende viver, desde muito cedo enfrentando a labuta diária. Aprende a odiar, porque é odiado. Esse pequeno engraxate, após prestar o seu serviço, desapareceu. Mas deixou a forte lembrança de um olhar inquieto, perspicaz, com jeito de adulto, a construir a sua própria história, para, por fim, se vencer as tormentas, chegar ao Brasil dos deitados em berço esplêndido.
Na visão desses dois Brasis, bem distante dos outros Brasis, impõe-se incorporar uma pedagogia de não inclusão de apenas valores materiais, mas uma educação construída em valores humanistas: amor, compaixão, justiça, perdão, cuidado, tolerância e paz. A intolerância gera o ódio, não contribuindo para eliminar as desigualdades, representadas por esses Brasis de desiguais. O menino engraxate, se educado, tem a responsabilidade, quando chegar o seu momento, de tornar o mundo o lugar mais pacífico e digno para todos. Esse é um dos sentidos fundamentais da existência humana. Sem ele, inexiste o compromisso ético com o jovem drogado ou com o menino engraxate. E mundo será concebido de acordo com o nosso egoísmo. E é impossível eliminar as desigualdades - a grande utopia de todo humanista - e muito menos construir a paz com guerra.

* Membro da AML e AIL.