Ideias de Canário. Personagem/narrador: Macedo. O autor de D. Casmurro começa a história com o relato de Macedo que diz que, indo por uma rua, livrou-se de um tílburi, que trafegava em disparada e quase o atirou ao chão. Escapou, ressalta, pois conseguiu jogar-se para dentro de uma loja de belchior (brechó). O dono do comércio não lhe deu pela presença e continuou a cochilar sentado numa cadeira, ao fundo. Andou pela loja, observando as coisas velhas, rotas, próprias dessa espécie de casa de comércio. Macedo registrou todas as suas impressões. Ao sair, viu uma gaiola pendurada na porta. Dentro um canário, que logo começou a saltar. Em seguida, começou a ter um inusitado diálogo com o canário, até porque – não havia dito – Macedo era ornitólogo. E, em determinado momento da conversa, indagando o canário sobre quem era o seu dono, a resposta foi imediata: - Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Com essa resposta, Macedo ficou pasmo, pela linguagem e ideias.

O diálogo continuou. Quis Macedo saber se o canário tinha saudade do espaço azul e infinito. Ele pediu explicação a Macedo, que o atendeu dando mais objetividade à pergunta: - ...que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo? Resposta do canário: - O mundo é uma loja de belchior (brechó), com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Tendo acordado o velho do brechó, Macedo propôs-lhe comprar o canário, para, como ornitólogo, fazer um grande estudo sobre o pássaro: linguagem, ideias, sentimentos estéticos, definição do mundo etc. Macedo o pôs numa ampla gaiola, na varanda de sua casa, onde o pássaro poderia ver o jardim e o um pouco do céu azul e manteve com ele longas horas de estudos. Três semanas depois desse trabalho científico, indagou-o a respeito do que era o mundo. O canário respondeu: - O mundo é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, de onde mira o resto. Tudo mais é ilusão e mentira. Com essa resposta, Macedo percebeu algumas alterações, mas ainda insuficientes para conclusão do estudo.

Dias depois, o canário fuge da gaiola, ao lhe ser dispensado o tratamento dado pelos criados da casa. Embora envidassem todos os esforços, não o encontraram. Macedo foi fazer uma visita a uma chácara de um amigo, situada nos arrabaldes. Passeando, ouviu o trilar de uma pergunta: - Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? No galho de uma árvore, era o canário. Voltaram a conversar. – O mundo, meu querido, disse Macedo. E o canário: - O mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Essa assertiva causou indignação em Macedo, que lhe disse que, se lhe desse crédito, o mundo seria tudo, até mesmo um loja de belchior (brechó). E o canário redargüiu: - De belchior (brechó)?, trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de brechó?

E o diálogo e o conto chegaram ao fim.

Mas as questões postas nesse diálogo do célebre conto machadiano continuam a exigir de todos nós respostas. O canário circunstancialmente deu as suas respostas. E as nossas respostas?

Como vemos o mundo e o que é mundo? Vemos o mundo e o concebemos da gaiola onde cada um nós se encontra? Essa é a nossa perspectiva de mundo? Enfim, o que é o mundo? O mundo é que se pensa de acordo com a nossa subjetividade? Concretamente, qual é o mundo de Moro, ídolo que fora tão decantado nesta nossa pátria amada, antes, depois e agora, em vista das circunstâncias por ele vivenciadas? Se ele conhecer o canário de Machado e as suas respostas, terá uma visão do mundo de acordo com a realidade que está a viver?

O magistrado, por exemplo, que conheça ou não conheça o canário machadiano, julga com uma visão de que mundo? O mundo das circunstâncias? O mundo e suas subjetividades? Ou o mundo de sua consciência, ficando dentro de sua gaiola de preconceitos? Devemos sair de nossa gaiola para ter uma pré-compreensão do mundo?

Um a certeza não sei se absoluta: há necessidade de sair da gaiola e ter uma pré-compreensão do mundo, ou, de outro modo, só teremos preconceitos. O canário quer nos dizer isso.

Membro da AML  e AIL.