A expressão do título não é de minha autoria. É criação do sociólogo Ricardo Antunes, autor, entre outros, do livro O Privilégio da Servidão, o novo proletariado de serviços na era digital. Essa obra não a li toda, mas em partes, para tentar entender o momento cruciante vivido pela classe trabalhadora no mundo “maquínico-informacional-digital”, consoante denominação desse professor titular da cátedra de Sociologia do Trabalho da Unicamp, o qual tem produzido artigos acadêmicos e livros lançados no Brasil e no exterior, que tratam sobre as dinâmicas, contradições e opressões do “mercado de trabalho” das últimas décadas.
Num dos capítulos da citada obra de Ricardo Antunes (Capítulo 2 – A explosão do novo proletariado de serviços), consta esta asserção: “Em pleno século XXI, mais do que nunca, bilhões de homens e mulheres dependem de forma exclusiva do trabalho para sobreviver e encontram, cada vez mais, situações instáveis, precárias, ou vivenciam diretamente o flagelo do desemprego. Isto é, ao mesmo tempo que se amplia o contingente de trabalhadores e trabalhadoras em escala global, há uma redução imensa dos empregos; aqueles que se mantêm empregados presenciam a corrosão dos seus direitos sociais e a erosão de suas conquistas históricas, consequência da lógica destrutiva do capital que, conforme expulsa centenas de milhões de homens e mulheres do mundo produtivo (em sentido amplo), recria, nos mais distantes e longínquos espaços, novas modalidades de trabalho informal, intermitente, precarizado, ‘flexível’, despauperando ainda mais os níveis de remuneração daqueles que se mantêm trabalhando.”
A partir dessa constatação, Ricardo Antunes faz o seguinte questionamento, que nos obriga a pensar sobre essa nova cruel realidade, desse novo mundo “maquínico-informacional-digital”: “...seria plausível, então, conceber a possiblidade concreta de um capitalismo sem trabalho humano, desprovido de trabalho vivo?” A resposta é um desafio, porque implica uma outra questão: - Produzir pra quem? Para qual mercado? Num primeiro momento, com a precarização dos direitos sociais, a concepção é de que a classe trabalhadora estaria em fase terminal. Surgiria desse escombro uma outra classe. Qual? Segundo Antunes, a dos servos, numa réplica do período feudal. Um exemplo dominante é a terceirização, que nada mais é do que um instrumento legal e servil de locação de serviço, com procedimento contratual realizado por um terceiro. Trata-se de um escravismo moderno, que precariza, ainda mais, a situação laboral de quem presta o serviço, uma espécie de servo, cuja força de trabalho é alugada, com ganhos para o locador e baixa remuneração para o prestador de serviços. Enfim, o proletáriosemiescravizado.
Ao explicar a expressão “uberização do trabalho”, Ricardo Antunes esclarece que “essa forma é o mascaramento de relações assalariadas, que assumem a aparência do trabalho do empreendedor, do trabalho do prestador de serviços, dos trabalhos desprovidos de direitos”. E acrescenta: “São trabalhadores que seguem o que na Inglaterra se chama ‘o contrato zero hora’ (‘zero-hour contact’ em inglês; ou os ‘recibos verdes’ em Portugal; ou o que existiu na Itália até 2017: o trabalho pago por voucher). São modalidades de trabalho intermitente, em que os trabalhadores são chamados a trabalhar, e só recebem por aquelas horas que trabalham. O tempo que eles ficam esperando, eles não trabalham.” E nada recebem.
Essa situação de precariedade laboral vem atingindo a classe média trabalhadora, como médicos, advogados e engenheiros, que se submetem a condições indignas como prestadores de serviços. E passam a integrar essa classe uberizada de trabalhadores. Há médicos proletarizados, que recebem quantias irrisórias de planos de saúde. Para ter um ganho melhor precisam trabalhar em vários lugares sem nenhuma infra-estrutura para atender aos pacientes. Também há advogados que sobrevivem a duras penas, recebendo gorjetas de escritórios para fazer audiências. Antunes, a propósito, faz a seguinte advertência: “Esse novo proletariado de serviços das empresas de call-center, telemarketing, hipermercados, fast-food, indústria de turismo, indústria hoteleira, motoboys; essa massa de trabalhadores que hoje está uberizada, trabalhando em empresas sob as condições mais violentas; é evidente que está nascendo aí um novo contingente heterogêneo dentro da classe trabalhadora, e que vai ser responsável por muitas lutas sociais.”
O refortalecimento do capitalismo pela via da extrema-direita é um fato que não pode ser negado. O que deve ser feito? Esta a grande e inevitável questão. No Brasil, há que se entender que o conformismo tem limites. São mais de trinta milhões de brasileiros em situação de vida difícil: desemprego, informalidade, destruição dos direitos sociais, perda dos direitos previdenciários e tantas outras mazelas. Nessa caótica situação de penúria, é impossível pensar-se uma sociedade que não tenha o poder de rebelar-se pela sobrevivência. Assim foi, no passado ainda recente, em que todas as mágicas da ditadura civil-militar se esgotaram, e a cidadania consciente foi para as ruas. Ulisses Guimarães, no discurso de promulgação da Constituição de 1988, bradou: tenho ódio da ditadura, evocando o sentimento do povo brasileiro. E uma das piores ditaduras é a do entreguismo: a ditadura econômica, em detrimento dos mais fragilizados.
* Membro da AML e AIL.
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