Ao definir o que seja traição, o Pequeno Dicionário de Houaiss o faz em linguagem direta e simples, sem maior rebuscamento semântico, dizendo que é a quebra da fidelidade, e acrescenta, ainda, o sentido da deslealdade. Com base nessa acepção semântica, ser traidor é ser simplesmente infiel, ou desleal. Parece, nesse conceito restrito dicionarizado, que o ato de trair é um quase nada. Ou seja: no fundo, no fundo, é o amigo que é amigo até certo ponto, daí em diante, já não é mais, mudou de lado, por um conjunto de conveniências, sempre fartamente justificáveis. Esclareço: quando fazia revisão de livros, tinha um amigo, Gregório de Moraes, escritor e poeta, e a nossa mania era implicar com dicionário, embora o consultássemos. Dizíamos, repetindo um chavão, que dicionário era o túmulo das palavras. A palavra dicionarizada, repetíamos, morria nas entranhas dos verbetes dicionarizados. Perdia a sua essência como significado, que é a própria vida quando utilizada em textos. Às vezes, as palavras morrem aprisionadas no dicionário. Precisam ser despertadas para o mundo. As palavras são do mundo. Dele vieram e para ele devem retornar, dando-lhe sentido.

Traição faz parte do mundo. O mundo sem traição seria um paraíso sem Adão e Eva, que, segundo a história bíblica, por ela, se desentenderam, originando toda essa confusão que nos acompanha desde o início dos tempos. E todo traidor não é só infiel ou desleal. É um pulha. Um verme desqualificado. É o traidor um estelionatário de consciências, que sofre a patologia do descaro da mentira, para fabricar o engodo de uma falsa verdade, que alguns tolos, por interesses pessoais ou burrice, acham por bem acreditar. Hitler foi conscientemente um pulha, adorado por milhões. Churchill, é verdade, admirava Mussolini, outro pulha.
A história do Brasil e do mundo é repleta de traição e traidores. O primeiro deles, Judas. Sendo então um dos doze, foi encontrar-se com os sacerdotes: - Que quereis dar-me e eu vo-lo trairei? Eles pesaram para ele trinta moedas. Judas aguardou o momento propício de realizar a traição. E os levou até Jesus e dera-lhes um sinal dizendo: - Aquele que eu beijar é ele: prendei-o. Encontrado Jesus, dirigiu-se a ele: - Saúdo-te, Mestre. E o beijou. Consumou a traição. Mas Judas, como todos os traidores, tem uma justificativa: foi o discípulo predestinado para trair, embora Pedro tivesse negado Cristo por três vezes, arrependendo-se, foi perdoado. Outros tiram bom proveito da traição. Brutus assassinou César, o amigo. Beneficiou-se. Depois, foi eliminado, vítima do seu próprio veneno.
Pinochet traiu Allende. Fato ocorrido nesta nossa América do Sul. Allende, pra quem não sabe, foi o primeiro presidente marxista eleito na América Latina. Governou o Chile por quase três anos. Pinochet ficou ao seu lado até o dia do golpe que o assassinou. Traiu-o. E se transformou num dos mais cruéis e sanguinários ditadores do Cone Sul. É figura proeminente das páginas de sangue das mais abjetas ditaduras.
De golpistas e traidores a nossa história está cheia. A começar pelo golpe da maioridade. Com essa manobra que atendia interesses oligárquicos, D. Pedro II assumiu trono aos 14 anos de idade, dando início a um dos mais longos governos imperiais que o Brasil já conheceu, culminando com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889; outro golpe, com apoio de fazendeiros e proprietários de terras, comandado pelo marechal Deodoro da Fonseca, amigo do imperador, que só a muito custo aderiu ao movimento republicano, tendo renunciado e sido substituído por Floriano Peixoto, denominado de Marechal de Ferro, também golpista, e que fez o diabo: prendeu, torturou e deportou. Rui Barbosa e Olavo Bilac tiveram que fugir do país. De outro modo, iriam ter seus dias nas infectas prisões do marechal ditador.
Antes, a Inconfidência Mineira. Ano 1789. Num só dia, em 18 de abril de 1792, os inconfidentes foram interrogados, julgados e condenados à morte, por uma justiça vassala. O traidor: o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que integrara o movimento e o delatou. O alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado no dia 21 de abril de 1792. Sentença prolatada e executada com rapidez invejável. Se o julgamento do ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB) fosse naquela época, quem sabe ele estaria, como aconteceu com os demais condenados do mensalão, cumprindo pena. O Brasil continua o mesmo: há apenados e apenados, a dependerem do partido político e dos interesses seletivos.
Tivemos ainda outras revoltas, e vitimas, e traições,s e traidores. Os irmãos Beckman, no Maranhão. Felipe dos Santos, em 1720, em Vila Rica. E um dos maiores traidores de nossa história: Calabar, que, de tanto fazer estripulia, foi executado.
No golpe de 64, em 31 de março, diz o historiador José Paulo Netto que o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, ligou para o presidente Goulart, para garanti-lo no governo caso rompesse com a esquerda, demitisse os ministros radicais e pusesse na ilegalidade a CGT. Jango não aceitou. Preferiu não trair suas convicções. Foi deposto pelo golpe civil-militar e midiático. Tancredo Neves, avô desse triste e patético senador Aécio Neves, ficou com Getúlio Vargas e Goulart até o fim. Quando o senador traidor Moura Andrade, famoso pela sua sabujice, anunciava a vacância da presidência da República, sob o falso argumento de que Jango havia deixado a nação acéfala, Tancredo, ao ouvir essa declaração mentirosa, avançou para a mesa da presidência do Senado, gritando: "Canalha! Canalha!". Que ressoa até hoje não mais para Moura Andrade mas para o neto, que não aprendeu com o avô a não trair nem se aliar a traidores como Temer, títere de interesses da elite conservadora e autor da criminosa frase: "Tem manter isso, viu."