Aureliano Neto*

Não sei se já tratei deste assunto. Se o fiz, repito-o, por não ser de nada enfadonho. Ao contrário, é de alguma relevância, por conter uma situação que faz parte do nosso dia a dia, já que o uso da moeda forçada (o dinheiro) está perdendo espaço para o dinheiro plástico, e, atualmente, para o pagamento feito através do sistema virtual da internet. Pois bem. Em julgamento do Recurso Especial n.º 1.133.410-RS, a Terceira Turma do STJ, tendo como relator o Ministro Massami Uyeda, em decisão unânime, a respeito de disputa envolvendo a cobrança de preços diferenciados, na aquisição do mesmo produto (por exemplo, gasolina), ora solvida a obrigação por pagamento em dinheiro e ora com uso do cartão de crédito, fixou o entendimento de que a forma de satisfação do preço à vista, mesmo através do cartão de crédito, tem natureza jurídica pro soluto, ensejando a imediata extinção da obrigação.
Passo a trocar em miúdos: a celeuma surgiu, em razão de que o fornecedor do produto estabeleceu dois preços: para o pagamento em espécie (dinheiro), valor de cumprimento da obrigação a menor; e, para o realizado por cartão de crédito, mesmo à vista, preço de satisfação a maior. Nas denominadas instâncias ordinárias, ou seja, juízo de base e no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a decisão admitiu como possível a cobrança de preços diferenciados para compras efetuadas em dinheiro e para aquelas realizadas por meio de cartão de crédito.
Esse o ponto de divergência foi levado ao STJ, que, por sua Terceira Turma, em voto bem minucioso do Ministro Massami Uyeda, relator do acórdão, fixou alguns aspectos relevantes para concluir pela abusividade da prática, fazendo referência aos arts. 39, inciso X, e 51, inciso X, do Código de Defesa do Consumidor. Lei principiológica, que, albergando a defesa da vulnerabilidade do mais fraco na relação consumerista, contém normas que, pela sua força cogente, porquanto de ordem pública, intervêm nos negócios de consumo.
Fugindo um pouco do espírito desse espaço, faço algumas considerações dos posicionamentos jurídicos contidos no acórdão.
Primeiramente, deve ser dito que, se essa decisão do STJ se firmar como jurisprudência, alcança caráter normativo, que, no dizer do Norberto Bobbio, assim se configurará, no plano do dever ser, enquanto tiver a ver com regras e enquanto, por sua parte, impuser regras, mesmo porque a ordem jurídica, nesse sentido de sua normatividade, vai sendo construída e reconstruída, na medida em que se vão alterando fatos, valores e interesses.
O acórdão acentua que o sistema de cartão de crédito, embora com ampla operação no mercado de consumo, não possui uma regulação específica, isto é, não há uma lei que trate das relações jurídicas que decorram dos contratos firmados entre as partes, a saber: a operadora do cartão e o beneficiário, e, numa outra ponta, o fornecedor do produto e do serviço. Nessa linha de análise, o STJ, por sua Terceira Turma, ao dar solução ao conflito que lhe foi posto, aplicou as regras do estatuto consumerista. Para isso, foram firmados alguns entendimentos, que desaguaram na conclusão da ocorrência de prática abusiva em face da cobrança diferenciada, onerando o uso do cartão de crédito.
Decorreram de todo exame algumas conclusões: a) o pagamento por meio do cartão do crédito garante ao estabelecimento comercial o efetivo adimplemento, já que a responsabilidade de solver a obrigação é da administradora; b) o consumidor, ao efetuar o pagamento por meio de cartão, em vista da autorização da administradora, exonera-se obrigacionalmente perante o fornecedor do produto ou do serviço; c) o pagamento à vista é pro soluto, ensejando a extinção da obrigação; d) o custo pela disponibilização de pagamento por meio de cartão deve onerar exclusivamente o estabelecimento comercial, ônus esse inerente à atividade econômica, não podendo ser suportado pelo consumidor; e) se o fornecedor disponibiliza o pagamento por cartão de crédito, "tal se dá justamente pelas benesses que o referido sistema lhe proporciona"; e f) aumentar o custo pela disponibilização de pagamento por cartão importa em onerar duplamente o consumidor, redundando em prática abusiva.
Com decisão do STJ, pela sua Terceira Turma, assenta-se um precedente judicial de forte relevância, como uniformização do direito infraconstitucional, que irá contribuir no sentido de solucionar inúmeras controvérsias que vêm sendo sucessivamente decididas nas Varas comuns e Juizados Especiais deste Estado, uma vez que fixa o entendimento da vedação de cobranças diferenciadas de preços com o uso do cartão de crédito e em dinheiro, imputando essa prática como abusiva, portanto acoimando-a de nula de pleno direito. Constrói-se, por esse precedente, a normatividade do direito que protege o consumidor. Na verdade, deflui-se desse entendimento a garantia de um direito ao consumidor, protegendo-o da especulação abusiva do fornecedor do produto ou do serviço. E isso me lembra que, em recente plantão judicial, quando deferi uma antecipação de tutela para que uma criança, em situação de risco de vida, pudesse ser internada num hospital e se submetesse a todo o tratamento médico, o pai em lágrimas afirmava: - Temos justiça! Apesar de todos os ataques de grupos econômicos, utilizando a grande mídia, adestrada pela farta publicidade, o Judiciário exerce a sua função social, de pacificação, e política, de construção da cidadania.

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