Aureliano Neto*
Acordei. Um sonho me fez despertar. Sonhava com meu avô. Fora um sonho provocante e estranho: a sua morte e seu sepultamento, como se ele tivesse se despedindo de todos nós às pressas. Felizmente, o dia estava rompendo a madrugada. Rezei para aquele homem, que, ainda criança, vi, no pequeno quarto da casa dos meus tios, na Belira, despedir-se de todos que estavam em torno do seu corpo estirado no catre e inerte. A partir dele, que deixou pedaços de vida, salpicados na minha existência, muitos se foram. De repente, a luminosidade do sol invade a minha privacidade, como a dizer-me: levanta-te. Sim. Não foi possível mais ficar na cama. Levantei-me, inquieto. O meu pensamento nas orações não ficou apenas para o meu avô, atravessou o espaço e o tempo e foi para minha mãe, D. Marionildes, que se encontra, nesse exato instante, hospitalizada numa UTI, a viver da dúvida da vida na iminência da morte. Busquei o aconchego dos livros, meus companheiros, juntamente com a minha mulher Jacirema, de todos os momentos alegres ou difíceis. Lembrei-me de Clarice Lispector. Folheando, encontrei esta frase: "Nós somos o que nos falta." Que não é dela, mas parece muito com ela. É clariciana, na expressão crítica de Eduardo Portella. Não fiquei aí, fui mais adiante, encontrando outra frase ainda mais clariciana, porquanto dela: "É muito difícil ser o que se é." E me veio a pergunta obrigatória e necessária: O que sou, de onde vim e para aonde vou? Não tive dúvida quanto à resposta, embora entenda que toda verdade não seja absoluta, porquanto sempre contaminada pelo relativismo dos conflitos pessoais. E pensei: sou meu pai, sou minha mãe, sou meu avô, sou minha tia, que me criou após a morte do meu avô, sou minha mulher, sou filhos, sou meus amigos, estes poucos, muito poucos, posso afirmar: apenas alguns. Sou pedaços de todas essas pessoas que amassaram o barro do meu viver. Neste instante, penso e sou minha mãe, ao relembrar a figura do meu avô.
De fato, é difícil ser o que se é. Somos pedaços - de amor, dor, emoções, êxitos e frustrações - que foram sendo amassados no curso da eternidade móvel do tempo. Nunca acabamos de ser, mesmo que a morte se avizinhe, ou ainda que tempo de vida seja longo. Na concepção existencialista de Simone de Beauvoir, viver é envelhecer. Não é bem essa a verdade. Viver é um nunca acabar de ser. Vivemos, na medida em que todos esses pedaços de nós mesmos, dispersos no curso da vida, vão se juntando, numa amálgama, que reflete a nossa personalidade diluída por múltiplos sentimentos.
O ensaísta e psiquiatra Anthony Daniels, citado por alguém em algum texto que li e não lembro onde, ao referir-se à vida, diz que "a vida só nos pertence até certo ponto. Mas ela é também o resultado da teia de afetos, ligações e obrigações que estabelecemos uns com os outros." Por isso, a frase clariciana se eleva ante as dúvidas da existência e da morte: é muito difícil ser o que se é. E nós somos o que nos falta. Se falta amor, afeto ou carinho, somos apenas um pedaço de nós mesmos, incompletos. Se faltam o pai e mãe, a nossa incompletude é ainda mais cruel. A vida não nos pertence. Há um condomínio em torno da vida, que nos retira da solidão de ser tão somente nós mesmos. Somos pedaços dos outros, numa decorrência genética ou de todas as emoções, que nos são concedidas, dadas ou doadas.
Penso - e como tenho pensado - no pedaço de mim, que está dentro de mim, que se encontra inerte e insensível no leito da UTI. Minha mãe, ao lado do meu pai, lutou com bravura para criar e educar os filhos. Deu-lhes amor aos pedaços. Eram tantos. Ao todo, treze. Dois - Ubirajara e Ubiratan -, queridos irmãos, já foram chamados para a eternidade. Estão lá, assim como meu avô e outros entes queridos, vivendo a dúvida da morte. Esse é o grande paradoxo do viver, que provoca a questão: se vivemos todas as certezas e as incertezas, para onde vamos? O certo é que não viemos do nada. Se viermos do afeto, do amor ou da carícia, nós somos afetos, amor e carícia. Não somos produtos de uma mera e inconseqüente abstração sexual. Ou de um furtivo orgasmo em que o sêmen alcança o útero da fêmea momentaneamente excitada.
Todas essas indagações são desafiadoras e provocantes. Exigem respostas. Uma certeza, que não quer dizer verdade: o fato é que, embora o homem tenha avançado no conhecimento científico, não creio que a resposta esteja na tão decantada descoberta partícula de Deus. O homem não é só matéria. Freud estabeleceu a dicotomia da mente, como base da psicanálise e fixando no inconsciente a história individual da pessoa, onde nele se encontra o reservatório de todas as nossas repressões. É a vida anímica e seu sentido íntimo do viver.
Adonis, o grande poeta árabe, felizmente vivo, em recente livro publicado pela Companhia das Letras, no poema Guia para viajar pelas florestas do sentido, constrói poeticamente o texto com seguidas interrogações. Destaco três estrofes: "O que é a morte? / carro que leva / do útero da mulher / ao útero da terra" (...) "O que é a velhice? / planta que cresce em duas direções: / a aurora da infância / a noite da morte." (...) "O que é viver? / caminhar sem pausa / rumo ao anoitecer." Pois é: vida e morte, dois momentos e dois pontos de desencontros; útero da mãe, de onde viemos; útero da terra, para onde vamos, na espera da eternidade do retorno, após todo um viver, do útero, em trânsito pela infância, pela velhice até o fim, ou para alguns até novo começo. Assim, na contemplação da minha mãe, inerte no leito hospitalar e insensível à chamada dos que a amam, agora compreendo que ali está um pedaço de mim, porquanto nós somos o que nos falta.
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