Assim se chamava a minha cachorrinha. De cor negra, pequenina. Não me lembro do doador. Sei que veio para minha convivência quando ainda era solteiro. Sízi foi o nome que a sacramentei num batismo coloquial do dia a dia. Acostumou-se. Ao ouvir o chamado, vinha aos pulos, saltitando, esbanjando uma alegria como se o mundo estivesse em festa. Sízi tinha um apego filial por mim. Depois, por minha mulher, Jacirema. Não tinha a ideia da dimensão desse sentimento. Acompanhou-me no casamento. Conviveu conosco nos primeiros anos de casados. Sempre fiel e atenta. Certa vez, engravidou. Ainda não se dava aos animais o tratamento vip que se desvela nos dias de hoje. Teve dois ou três cachorrinhos, que nasceram mortos. O seu parto foi no guarda-roupa. Não queria sair de junto dos filhotes. Foi uma luta tirá-la da posse das crias. Com jeitinho, conseguimos. Os cachorrinhos, nascidos sem vida, os enterramos, longe dos seus olhos, no quintal da casa. Foi um drama que nos contagiou. Vendo-se sem os filhos, que não compreendia, no seu sentimento materno, que estavam mortos, Sízi ficou inquieta e os procurava por toda a casa, olhando para cima e para os lados, numa busca que demonstrava o seu sentimento de perda. Algo humano. Lembra-me uma empregada que tivemos. Deu luz a uma criança no Hospital Regional. Passados alguns dias, veio até nossa casa, perguntamos pelo filho. A reposta sentida, mas sem lágrimas: - Logo após o nascimento, deu para uma família, que sequer conhecia, que já estava aguardando para receber a doação. Vi no rosto daquela mulher um profundo sentimento de perda, de vazio, de dor. No seu rosto sofrido, a mãe que sequer teve a possibilidade de ser mãe.
Aquela mãe de rosto sofrido, pela impossibilidade de ser mãe, levou-me a um outro momento, que a vida profissional me obrigou a presenciar: a uma delegacia de polícia. À época, além de advogado, fazia política. Política mesmo, em que se lutava pela democracia. E, por ser advogado atuante, era sempre procurado para resolver as questões que envolviam os "meus correligionários", que eram, a bem da verdade, clientes informais. Misturava as bolas. Atendia aos amigos e aproveitava para me projetar na área jurídica para aumentar a minha futura clientela. Às vezes, era uma espécie de advogado do diabo, patrocinando algumas demandas que contrariavam o meu perfil de viés socialista, digamos assim. Uma expressão um tanto démodé, mas que ainda goza de algum prestígio, embora transitoriamente em baixa.
O caso foi o seguinte: um amigo e correligionário, candidato a vereador, com amplas possibilidades eleitorais, dirigindo o seu veículo por uma rua muito movimentada, de dentro de uma casa sai correndo uma criança e se projeto na direção do veículo. Bateu com a cabeça na lateral do carro. Teve morte imediata. Sou chamado para dar assistência jurídica ao condutor do veículo. Chego à delegacia, o 1º Distrito Policial, e a primeira pessoa que vem ao meu encontro é a mãe da criança, que me conhecia. Vem aos prantos e me abraça, como a pedir o meu apoio para aquele momento difícil da trágica e inesperada morte do filho. Essa cena de dor dessa mãe ficou comigo para sempre. A perda do filho, a mãe sofrida e o advogado que estava ali para dar assistência ao condutor do carro, objeto fatal que acidentou o seu filho. E ela, a mãe, em prantos, vem em súplica amparar-se nos meus braços. Como solucionar esse conflito? Assaltou-me essa impositiva pergunta, ditada pela solidariedade Não há resposta e solução humana. Se há culpados dessa ambivalência, todos nós os somos, pelo simples fato de sermos humanos e fazermos do amor o sentimento da conciliação. Impõe-se seguir a máxima franciscana: consolar e ser consolado, compreender para ser compreendido, amar e ser amada. Opções simples, e complicadas. Tanto que alguém já afirmou que o mais sublime não é ser amado, é amar. Ou, no canto de Renato Russo: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Sem os limites do hoje, do agora ou do depois. E esse é o amor de toda mãe. Amor que se estende pela eternidade do tempo.
Estamos com a mania, não sei se boa ou má, de criar animais. Uns criam gatos, outros cachorros, alguns macacos, e outros tantos periquitos. As casas viraram um jardim zoológico. Uma recente estatística está a nos dizer que o número de crianças no mundo está em queda, enquanto o dos cachorros vem se acelerando para o alto. No Brasil, afirma a turma dos números que temos mais cachorros que crianças nas famílias. Estamos sendo bastante franciscanos. Não me excluo. Pela minha casa, além de Sízi, que nos deixou em razão de uma segunda gravidez, já tivemos coelho, que, coitado, morreu envenenado, um papagaio, esperto, que bateu asas e voou para uma frondosa árvore e nunca mais voltou, um cachorro vira-lata de Bernadete, que não resistiu ao veneno de sapo e sucumbiu sob os cuidados de um veterinário. Mas Sízi foi a rainha. Reinou durante muito tempo. Miudinha, alegre, sacolejando a cauda numa permanente festa de amor. Ah!, que imensa saudade de Sízi, que me fez lembrar de tudo que contei aqui.
Edição Nº 15759
Sízi
Aureliano Neto
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