Aureliano Neto*

Garoto. Calças curtas. O bonde era o transporte utilizado por muitos, dos mais pobres aos remediados. Também a caminhada, sem tanta pressa. Da Praça do Cemitério, depois da Saudade, ao Mercado Central, ia-se batendo as canelas. Mesmo de alguns dos bairros periféricos ao centro. A cidade não era tão grande, a não ser quando se ia para o Monte Castelo, Cavaco, João Paulo ou Anil. Lugares considerados distantes. Pegava-se o bonde, ou os escassos ônibus, que faziam linhas. Mas o bonde era essencial e preferido, porquanto arejado, com ar de tranqüilidade, sem o rebuliço do afogadilho, impregnado de solidariedade, a possibilitar às pessoas a conversa amena da ida ou da volta, quer no estribo ou nos bancos. Velhos e mulheres tinham preferência no assento. Os homens, cavalheirescamente, davam o lugar. Era a regra que tinha força de lei, que, caso não cumprida, gerava constrangimentos para quem se mantinha sentado em detrimento da mulher ou do mais velho.
Cedo, ainda com oito ou nove anos de idade, fui para uma oficina de sapateiro. A determinação era: aprender a fazer o seu próprio sapato. Confesso: não fui bom aprendiz. Não por falta de bons mestres. Seu Vitório era um bom artesão. Faltou-me vocação para o ofício. Mal aprendi a chanfrar e, como não poderia ser tão despido de inteligência, adquiri conhecimento na arte de bater sola. Fora um razoável batedor de sola, cuidando para não deixar marcas. Isso já era indício de que, do ofício, aprendi alguma coisa. Porém, cumpria literalmente os mandados, que me eram incumbidos.
Um dia, foi me dito: você vai aprender outra profissão. Denuncio logo o autor dessa determinação: meu pai. Disse-me: - Há uma boa profissão para você que estuda: vai aprender linotipo. Nem tinha ideia do que era. Maçarico (um amigo de meu pai) arranjou uma vaga num jornal para realizar o aprendizado. Encorajaram-me, justificando a nova opção de vida: tratava-se de uma profissão nobre. À época, criança não discutia as ordens paternas, cumpria-as. Foi o que fiz. Apresentei-me ao jornal para iniciar a missão de aprendiz. Era o Diário da Manhã, localizado perto da Ulen, na rua da Estrela. Lá começou tudo. Meu envolvimento com jornal, desde a oficina até o primeiro texto que publiquei em O Imparcial, sob o incentivo generoso de Ferreira Baty, incansável secretário que passava noites indormidas para fechar a edição.
Não dei muito certo no Diário da Manhã. Por incompatibilidade, fui mandado embora. Deram-me o ultimato: - Pegue a sua roupa, receba a sua cabeça (o dinheirinho do fim de semana) e vá embora. Acatei a ordem. Fui ao SIOGE - para quem não sabe: Serviço de Imprensa e Obas Gráficas do Estado -, tendo sido recebido por um dos maiores amigos que tive na vida: Zé Ferraz. Chefe das linotipos, extremamente humano. Criança de dez anos de idade, cheguei às lágrimas pedindo proteção. Ferraz estava na porta com Italiano, mecânico, que trombeteava suas imprecações, como se fosse um tenor trágico. Ouviram a minha súplica. E me levaram ao Dr. Renato Carvalho, diretor do SIOGE e do Diário da Manhã. Pela interferência de Zé Ferraz, fui admitido como aprendiz de linotipo. Naquele momento, um sonho começava: aprender o ofício. Em pouco tempo, aprendi. Durante dez a onze anos, o exerci, no SIOGE, onde passei mais tempo, e em O Imparcial.
Além de Ferraz, que me foi uma espécie de mecenas a proteger-me, tive no SIOGE grandes amigos. Expedito Moreira, Aradian, Pedro Lopes, Charlou, Marcos, auxiliar nas muitas noites em que trabalhamos das 10 horas até as cinco da manhã, Virgílio, Carneiro, Sabiá, Lobão, Ferdinando (o nosso Orlando Dias), Mário Amorim, chefe da paginação e de um humor sarcástico, D.Totó, que tinha a vocação pacificadora de Gandhi. Todos grandes profissionais, que dignificaram a profissão gráfica. Como fora Paris para Hermingway, o SIOGE era uma eterna festa, marcada pela solidariedade do amor fraterno. A lembrança me vem, porque Machado teima em nos dizer que o passado é ainda a melhor parte do presente. Debruçado na janela do tempo, sofri imprecisa saudade daquele mundo. Abri a sua porta, para contemplar os sonhos que ficaram realizados ou não, e os novos sonhos que foram por todos nós sonhados.
 

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