Eis a tormentosa questão, em razão dos acontecimentos da França, quando terroristas muçulmanos mataram os cartunistas do semanário satírico “Charlie Hebdo”, acusando-o de vilipêndio à figura sagrada de Maomé, retratando o profeta em charges, havidas como ofensivas, resultando no assassinato de 17 pessoas, onze delas chargistas mortos dentro da sede do jornal francês, o qual fazia do humor uma celebração contínua de zombar, especialmente, do islamismo ou dos símbolos cristãos. Noticia reportagem de capa da revista Carta Capital, que, tempos atrás, sem esclarecer quando, “uma charge mostrava, da forma mais crua, o encontro (seria um rendez-vous?) entre a Virgem Maria e um centurião romano, com o resultado de trazer a vida, quem mais, se não Jesus Cristo”. E em outra situação, relatada por Vladimir Safatle, na coluna Palavras e metralhadoras, “em sua edição número 1.099 lê-se na capa do Hebdo a frase: ‘Massacre no Egito: O Alcorão é uma merda, ele não para as balas’ e o desenho de um egípcio a sangrar com o livro na frente crivado de balas”. Todas essas provocações satíricas foram provocando a paciência de fundamentalistas islâmicos, que, de forma insensata e com extrema violência, fizeram com que a França vivesse o seu nefasto 11 de setembro.
Dos fatos decorreu um dos maiores debates ideológicos que se processou no mundo inteiro, com muita gente boa e não tão boa se metendo no meio dessa escabrosa história, na qual também estou metendo a minha colher. Procurei ler as opiniões, todas muito díspares. Contraditórias mesmo. Uns visceralmente contra o ato terrorista; outros nem tanto ao mar nem tanto a terra. Algumas opiniões sensatas, e outras corporativistas e extremamente radicais. Alguns filiando-se à corrente dos rebanhos desorientados, seguindo a onda que se formou na condenação dos muçulmanos e os rotulando de terroristas, sem uma análise dos fatos históricos. Nada acontece sem o passado.
Seguem os prós e contra. Uma das primeiras manifestações que li foi a do escritor paquistanês     Tariq Ali, que publicou um texto na Folha de SP, em Tendência/Debates, com o título Guerra entre fundamentalismos, em que condena o atentado terrorista, mas evidencia que o semanário “Charlie Hebdo” nunca escondeu o fato de que continuaria provocando os muçulmanos produzindo humor satírico contra o profeta Maomé, acentuando que “atacava ocasionalmente o catolicismo, dificilmente – ou nunca – o fazia contra o judaísmo, mas concentrou a sua ira sobre o islã”. Acrescenta ainda: “Defender o direito de publicar o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, mas sacralizar um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar os atos de terror contra a publicação.” Conclui: “Há um pouco mais que sátira em jogo. O que estamos testemunhando é um conflito entre fundamentalismos rivais, cada um mascarado por diferentes ideologias.” Quer dizer o escritor paquistanês que não se trata de um injustificado ataque, de uma guerra, contra a liberdade de expressão, como se pretendeu acreditar-se nas manifestações que se espraiaram no mundo inteiro. Há um conflito fundamentalista de ambos os lados. Daquele que satiriza o sagrado, sem fixar um parâmetro de respeito, sustentado no também sagrado direito de liberdade de expressão, e daquele que, ofendido pela difamação ao sagrado que professa, reage desproporcionalmente.
Scot Long, na Ilustríssima da Folha de SP (por que não sou “Charlie”), ao falar sobre a tese de que ninguém tem o direito de se ofender (ou de matar porque ouviu alguma coisa que o desagradou), responde com veemência: – Eu me ofendo, sim, quando os setores já oprimidos de uma sociedade são insultados intencionalmente. Não quero participar. O crime cometido em Paris não suspende minha capacidade de julgamento político ou ético, nem me convence de que difamar escatologicamente a identidade e as crenças de uma minoria periférica seja uma atitude razoável. Mas isso significa rejeitar a única reação autorizada à atrocidade.
Já Slavoj Zizek (Paradoxo do liberalismo, Ilustríssima, FS) indaga: – Quão frágil deve ser a crença de um muçulmano se ele se sente ameaçado por uma caricatura estúpida publicada num seminário satírico? Procede. As charges ofensivas nada têm de humor. São cretinas, embora satíricas, no sentido de que ridicularizam uma crença ou divindade religiosa, cara para aqueles que devotam fé, ainda que de nenhuma relevância para quem não crê. Nas duas pontas, o fundamentalismo: o que avilta a crença de uma etnia, de uma cultura, e o que sofre o vilipêndio e, como resposta, agride desmesuradamente matando, por considerar blasfêmica uma ridícula e inexpressiva charge. O sagrado para quem o considera sagrado continua sagrado; o ridículo ou humor inexpressivo só tem valor com a brutalidade da matança. Gerald Thomas, favorável às sátiras ilimitadas de temas religiosos, diz que, quando urram da plateia, chamando-o de “judeuzinho”, “abaixa as calças e mostra a bunda”. Ainda bem que tem alguma coisa para mostrar. Outros, despidos dessa protuberância, matam, embora não tenham direito de matar; ou ofendem, embora não tenham direito de ofender. Por isso, ser ou não ser Charlie, não é a grande questão.