Dois grandes artistas que saíram de mansinho, deixando uma imediata saudade para aqueles que festejam a sua arte: a boa e criativa literatura e as inteligentes e poéticas letras registradas em músicas geniais. Além de Rubem Fonseca e Aldir, um outro personagem que marcou na arte cênica a vida de muita, também se despediu: o ator Flávio Migliaccio, que, depois de viver 85 anos, se desencantou com os desencontros desse nosso conturbado mundo. Teve tempo de deixar um bilhete de despedida, do qual destaco esta passagem: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice nesse país é o caos, como tudo aqui.” E partiu. O seu companheiro de vida artística, Lima Duarte, saiu do seu cantinho do esquecimento da velhice e lembrou o tempo dos dois no Teatro Arena, sob a direção de Augusto Boal, o grande mestre do Teatro do Oprimido, que tinha como fundamento estético a democratização da cena teatral, uma espécie de encenação que quebra com os valores tradicionais.

Na manifestação de pesar, pela perda do amigo, Lima Duarte lembra o período da ditadura civil-militar em que foi preso e conduzido ao Dops, sendo recebido por Tuma (o Romeu), que era assistente do famigerado e notório delegado Fleury, que matou e torturou muitos brasileiros e brasileiras, sob o silêncio dos inocentes que não tiveram a coragem de combater o bom combate. Finaliza Lima Duarte, citando um personagem de Brecht, Pedro Jáuqeras: “Os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue.” Esta frase diz o que foi 1964 e seu desdobramento, quando muitos se aproveitaram para, apoiando o autoritarismo, tirar proveitos pessoais, ora políticos, ora econômicos. Infelizmente, a insensatez e a burrice querem repetir a história, agora como farsa.

Bem. Deixemos isso de lado. Nesta conversa quero falar desses dois artistas, falecidos e esquecidos pela nossa Secretaria da Cultura, ou inCultura, ainda dirigida por Regina Duarte. Ou melhor, retifico: ainda não dirigida por Regina Duarte, embora tenha sido nomeada com todas as pompas, não conseguiu até hoje apresentar um projeto, sequer um projetinho insignificante, para a cultura brasileira. E, pelo andar da carruagem, não vai conseguir, até porque já tem general (advirto: não é o capitão, é gente de alta patente!) interferindo na Secretaria da nossa namoradinha do Brasil.

Mas vamos ao que interessa.

Rubem Fonseca. Faleceu aos 94 anos. Não foi vítima da coronavírus. O tempo da vida o levou. Mas a sua obra ainda o fará permanecer entre nós. Como prosador, foi romancista, contista, ensaísta e outras coisas mais. Dizem, e ele não negava esse fato, que trabalhou para o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), criado e financiado por empresários brasileiros e o governo americano, para achincalhar e, por fim, derrubar o governo de João Goulart. Embora tenha sido um escritor que cultivava a reclusão, chegou a se manifestar sobre esse incômodo tema, esclarecendo que chegou a ser diretor do Ipes. E, em artigo publicado em jornais de 1990, o autor de A Grande Arte disse que a organização se dividia entre duas alas — uma que defendia uma solução política com o uso da força e outra que era democrática. Ele, que dizia ser parte da segunda ala, costumava ainda afirmar ter cortado qualquer relação com o Ipes em 1964.

Independentemente dessa passagem, a literatura de Rubem Fonseca é feita numa linguagem crua, revelando, sem subterfúgio as mazelas sociais. Por ter sido advogado e escrivão de polícia, era mestre na narrativa que envolvia temas criminais. Tive a oportunidade de ler algumas das suas obras, entre as quais cito Feliz Ano Novo, uma coletânea de contos, que foi censurada pelo regime militar, além de A Grande Arte, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, Bufo £ Spallanzani, Agosto (este um excelente romance histórico) e outros livros. Meu primeiro contato com Rubem Fonseca foi quando estava no Rio e, numa pequena feira de livro, na Praça 15, adquiri o seu comentadíssimo Feliz Ano Novo. Parte das suas se encontra na minha biblioteca desta minha Imperatriz.

Aldir Blanc. Morto por essa insolidária coronavirus, que veio para nos alertar o óbvio: somos apenas mortais. E ponto. Aldir é, e jamais foi, um dos maiores letristas da música popular brasileira. Cito apenas algumas das suas criações: O Bêbado e a Equilibrista, Kid Cavaquinho, Amigo é pra essas Coisas, imortalizada pelo conjunto MP-4, Dois pra Lá, Dois pra Cá, De Frente pro Crime, e a genial O Mestre-Sala dos Mares. Há muitas. O espaço não dá.

Resta apenas de dizer que O Mestre-Sala dos Mares foi burramente censurada pelo regime ditatorial de 64. Essa música foi feita em homenagem histórica a João Cândido, cabo da Marinha e um dos lideres da Revolta da Chibate (ler a história). Era um negro, que ficou conhecido como o Almirante Negro. Aldir conta que conversou com os censores, pedindo uma explicação racional sobre a censura, e a resposta que lhe foi dada foi esta:

 “- O problema é essa história de negro, negro, negro...”

Aldir Blanc, ao ouvir essa afronta, saiu devagarinho e voltou à racionalidade do seu cotidiano.

Membro da AML e AIL.