A rua é estreita, mas infinitamente comprida. Íngreme. Parece não acabar. No fim, um descampado. Nele, as crianças se encontram ao cair da tarde e nos fins de semana, para jogar bola, no jogo dividido. Dois ou três de um lado, e o mesmo tanto do outro. E a bola de borracha ou de seringa ou de meia a rolar nos pés dos mais hábeis, ou mesmo de frágil habilidade. Havia a barreira: os times esperando a saída do perdedor para entrar na disputa de outro prélio. Nesse descampado, praticavam-se outras espécies de lúdicas brincadeiras, como empinar papagaio e jogar bolinha de gude. É campo de festa! Enfeitado pelos risos, pela descontração, pela disputa, pelo enfrentamento no braço.
É uma rua típica. Com pessoas típicas, que gostam de sentar à porta para conversar. Depois, recolhem-se para fazer a janta, retornando mais tarde, pela noite, quando prosseguirão na conversa iniciada no decurso do dia.
Fala-se de tudo. Até mesmo da vida alheia. Tema corriqueiro e necessário.
O pensamento anda, ao andar por essa rua. Pensa-se andando. Vai-se andando pensando. Veem-se as pessoas como pessoas. Também se imaginam as pessoas. Seus problemas. Dificuldades. A amizade equilibra as diferenças. Há naturalmente os encontros e desencontros. Multiplica-se o amor acima das desavenças. Não chega a ser uma rua fraterna, mas se aproxima muito dessa humana possibilidade. Há, sim, retifica-se, excluindo a cruel dúvida, essa possibilidade de ser fraterna. Por isso, a fome é expurgada pela solidariedade. O vizinho passa sempre pela cerca de pau a pique um prato de comida, que ajuda nessa necessidade vital.
Surgiu no perder do tempo. De uma velha e antiga quinta. Uma casa aqui, outra ali. Depois enfileiraram-se. Os quintais foram perdendo espaço. Diminuindo. De cerca de varinha para muro. Ainda assim, as pessoas insistem em se amar. Compreendem-se.
A rua, como qualquer personagem da vida ou da criação ficcional, de índole subjetiva, vai morrendo, ou as pessoas vão morrendo. Não é a mesma. Ela morre com as pessoas, e as pessoas morrem com ela. Há uma certa reciprocidade vivencial e de morbidez, que descamba para o fim fraticida.
D. Deja, uma das suas primeiras moradoras. Dizem. Casa de palha. Lugar ermo. Pouca gente morando. Mais adiante, um cajueiro sombroso, onde, nas tarde de sol, costumam conversar, recebendo no rosto o vento forte que ameniza o calor escaldante.
Duas filhas. Uma mais nova que a outra. Claro. Não são gêmeas, embora se pareçam muito. Fruto da sua convivência com um grande cantador de bumba-meu-boi. Casa de chão batido e porta de meaçaba. À noite, vendia frutas até a hora de recolher-se. Certa vez, já um pouco tarde olhou pro rumo do cajueiro, lá estava pastando um burro de um carroceiro, que o deixava, após o azáfama do dia, pastando e descansando sob a copa frondosa daquela árvore. Noite clara. O reflexo da lua clareava bem. Sentada à porta, continua a aguardar algum freguês. Nada. Casas distantes uma das outras e separadas pelo mato nativo. Caminho de chão de terra, feito pelo passar do transeunte e dos animais.
Mais tarde, volta a olhar pro rumo do cajueiro. No lugar do animal, um caixão de defunto. Aperreia-se. Toma pé da situação. As meninas dentro da casa, no primeiro sono. Entra, põe as coisas pra dentro. Fecha a porta de meaçaba. E começa a ouvir um barulho lúgubre que se aproxima da casa. Junta-se em proteção às filhas. Reza a Deus e a todos os santos. Pede amparo. O barulho cada vez mais forte se aproxima da casa, como se tivessem arrastando alguma coisa muito pesada. O chão treme. Agarra-se às meninas. E a coisa pesada, arrastada e barulhenta vai passando. O corpo treme. O medo é contido na defesa e proteção das filhas.
A rua é assim. Cheia de mistérios, como sua gente. De encantos e desencantos. Mais tarde, também de desencontros. 

Nela, tantos risos e tantos choros.
Nela, tantas gentes, tantas vidas, tantas
e tantas mortes.
Tantas histórias alegres e tristes.
No contraste do errado e do certo.
Do amor e do ódio. Do nada e do ser.

* Membro da AML e AIL.