Réquiem, dizem os dicionaristas que é uma espécie de rito especial, celebrado por algumas igrejas cristãs em homenagem aos mortos. A Igreja Católica ministra as missas de réquiem, que evocam o repouso ou descanso eterno da pessoa falecida. Aqui não é uma missa, nem um rito de consolação, ou um culto. Enfim, quaisquer dessas expressões e os seus sentidos de recomendação cristã para o encontro definitivo com o Pai. É bem diferente. Na verdade, é um brado de inconformismo pelo assassinato de uma vítima tão inocente. E ainda conjecturam, numa justificativa que nada justifica, que o bárbaro crime ocorreu por uma simples bala perdida. E aí pronto. Quem matou, matou com essa estúpida excludente, que não se sabe se se trata de estrito cumprimento do dever legal, estado de necessidade, ou mero acidente de erro do atirador, que tem por hábito treinar e treinar para, num equívoco fatal, matar as pessoas inocentes com “bala perdida”. Depois de tudo consumado, fica o dito pelo não dito. E governador, a depender da vítima do assassinato, ainda comemora, efusivamente, sob os aplausos da plateia, a nos lembrar, histórica e tristemente, quando Nero ia para o Coliseu matar os cristãos, queimando-os ou dando-lhes de repasto para as feras famintas, sob a ovação dos não menos sanguinários espectadores. Miserável sociedade esta nossa, construída em cima de cadáveres de inocentes, simplesmente porque moradores pobres de guetos, denominados eufemicamente de favelas.
Não bastasse a menina Ághata, de oito anos de idade, ser uma das milhares de crianças excluídas das benesses de nossa sociedade excludente (a redundância é necessária), uma injustificável e assassina “bala perdida” definitivamente a excluiu do convívio dos seus amiguinhos da favela, onde às duras penas conseguia viver, da escola e dos seus familiares. 
Li a notícia sobre o drama e convulsão social do sepultamento dessa mais nova e recente vítima da barbárie que se instalou no Brasil e, mais dolorosamente, no Estado do Rio de Janeiro, agora sob a desastrosa direção de um ex-juiz federal. O Rio, pelas notícias que nos chegam a este sofrido Nordeste, de tantas desilusões e que no passado teve um Lampião, que era tão bandido quanto à polícia do seu tempo, implantou a pena de morte, à revelia da Constituição Federal. Mata-se e mata-se. E comemora-se, como se o assassinato de inocentes ou infratores fosse um troféu de um campeonato de futebol ou de corrida de fórmula 1. Infelizmente, essa é a infame realidade, construída com sangue e lágrimas para, defendem os incautos (sempre há os incautos), combater a violência. Uma fórmula sagrada para esses desinformados: violência só pode ser combatida com a violência. É a antiguíssima regra, lá do Código de Hamurábi, ou ainda bem antes, do olho por olho, dente por dente, assentada na vingança - a lei de talião, há muito expurgada, pelo menos ainda, dos ordenamentos jurídicos civilizados.
A notícia informa que “a bala que matou Ághata Félix, 8, interrompeu o futuro de uma criança dedicada aos estudos e sonhava em ser bailarina e dava os primeiros passos como praticante de xadrez. Filha única, era tida pelos mais próximos como reservada, obediente, educada e religiosa”. Mas, com todos esses predicados positivos, morava numa favela e era pobre. Esse dado elementar do seu currículo goza de uma fatalidade determinista, como o foi, de ser eliminada do convívio social por outra fatalidade, muito comum nesses nossos tempos: uma “bala perdida”.
E Ághata foi atingida nas costas, quando estava com a sua mãe dentro de uma Kombi, na comunidade da Fazendinha, no Complexo Alemão. Isso foi suficiente para que fosse assassinada. Não foi encontrado ao seu lado nenhum reles e insignificante pacotinho de maconha, droga de uso corriqueiro nos condomínios de luxo da Zona Sul. Encontraram apenas um corpo agonizante nos braços sofridos de sua mãe. Se Ághata estivesse em Ipanema, no Leblon, em São Conrado, mesmo na decaída Copacabana, ainda estaria com vida entre o aconchego dos seus amiguinhos e familiares, pela simples razão de que nessas “comunidades”, inexiste a tão acidental “bala perdida”, que, como se fosse um drone assassino, sempre encontra na sua trajetória destrutiva o corpo de um pobre pedreiro, ou de uma inocente criança como Ághata. Mesmo assim, com todas essas tragédias, ainda há aqueles que aplaudem essas insanidades. Hitler pensava assim. E pregava, com todas as bênçãos dos tolos: para se construir uma Alemanha pura, o povo judeu deve ser eliminado. Como não havia “bala perdida”, vieram os crematórios para concretizar a solução final. Bem. Para finalizar, já que tenho que chegar ao fim: como dizia o eruditíssimo Ibraim Sued: olho vivo, pois cavalo não sobe escada.

* Membro a AML e AIL