Antonio Prata, em crônica publicada na Folha de São Paulo, edição 16 de fevereiro de 2014, Cotidiano, p. C2, desabafa: “Nosso país está estranho, minha amiga. Coisas horrendas andam acontecendo e, em vez de as pessoas pensarem em como impedir que coisas horrendas aconteçam de novo, querem é infligir coisas horrendas a quem as infligiu.” E, com a ênfase de quase desânimo, enfatiza: ”Mais dia, menos dia, vou abrir o jornal e ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia.” Pois é. As intolerâncias estão se espargindo em nossa sociedade como um veneno destruidor. O desumano está querendo justificar o desumano. A crueldade serve de contraponto para a prática de atos muito mais cruéis. A jornalista do SBT, Rachel Sheherazade, de quarenta aninhos de idade, ao fazer a defesa da brutalidade de marginais justiceiros, propaga em tom grave as notas ressonantes da intolerância: – A atitude dos vingadores é ato compreensível, disse da tribuna sagrada de uma TV, no exercício da liberdade de expressão, usando uma concessão pública, de todos nós, para fazer apologia ao crime. E disse mais: – O contra-ataque aos bandidos é que chamo de legítima defesa coletiva. Aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. Meu Deus!, espanto-me. Em pleno século XXI, tomar conhecimento dessa agressão às grandes conquistas históricas do homem no aperfeiçoamento de uma convivência pacífica e civilizada, alcançando esses avanços o Estado Democrático de Direito, é de matar, dando ânsia de vômitos. Hitler deve estar dizendo: – Tá vendo, eu estava certo. O pior: a jornalista teve adeptos. O não menos famigerado Silas Malafaia, pastor que comanda uma igreja protestante e vive muito bem, não creio que graças a Deus, a custa de dízimos, não silenciou e veio de forma retumbante em defesa dessa monstruosidade: – Quase me esqueço, parabéns ao SBT por ter a jornalista Rachel Sheherazade. Os esquerdopatas não a suportam porque ela defende valores (???, interrogações minhas) cristãos (???!!!, mais interrogações e exclamações). Esse homem, que se diz de Deus, pasmem, lê a bíblia. E vai mais adiante: prega esses valores de Sheherazade. Cristo deve estar dizendo para si mesmo: – Tenho que voltar com urgência. Estão praticando monstruosidades em meu nome.

Num outro episódio, publicado no site jurídico Migalhas, deparo-me com essa crueldade de intolerância. Transcrevo-a: “Boa parte dos operadores do Direito, por conta de questões de política partidária, vibraram com as atitudes do JB (para quem não sabe: ministro Joaquim Barbosa, popularmente JB) no mensalão. Esse caso da advogada cega é escandaloso e a manifestação do JB beira aos mais simples e pura falta de um mínimo de senso de Justiça. Para os maus alunos da Teoria Geral do Direito vale lembrar que, acima das nossas torcidas partidárias, está o Estado de Direito Democrático. Os absurdos do JB estão cada vez mais sendo cotidianos e na hora que atingirem os seus ‘fãs’, esses reclamarão, tardiamente.” O que aconteceu, para tal disparate? Uma advogada cega, a Dra. Deborah Maria Prates Barbosa, inscrita na OAB/RJ, requereu ao CNJ acesso para, com liberdade e independência, exercer a sua profissão de advogada, já que o sistema PJe é inacessível aos deficientes visuais, por encontrar-se fora das normas internacionais. JB, ou melhor, o ministro Joaquim Barbosa, sob o argumento de que a advogada poderia pedir auxílio a terceiros para peticionar junto ao CNJ eletronicamente, negou. A advogada foi ao STF. O ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar para que pudesse apresentar petições em papel, até que os sites do Poder Judiciário tornem-se acessíveis a deficientes visuais. Os jornais publicaram a resposta intolerante de JB: considerou a decisão um “exemplo” de “populismo judiciário”. Até agora, não sei qual foi a posição da OAB.
Enfim, de intolerância em intolerância, vamos construindo uma sociedade violenta, desumana, não solidária, sob o falso argumento de que estamos a combater a criminalidade e de estarmos sendo rigorosos cumprimento das regras. A verdade pode até ser essa, mas não é bem essa. O jornalista Jânio de Freitas, em texto publicado na Folha, em 9/2/ 2014, Poder, p. A10, manifesta desencanto por esses abusos: “Pudera. Quando um ministro do Supremo Tribunal Federal, sem sequer indício de indício, assaca suspeitas que já são meias acusações de lavagem de dinheiro até de advogados de alta reputação, por doarem para as multas penais de petistas, o que mais se passe como confusão de conceitos e degradação de princípios talvez seja de total irrelevância. Gilmar Mendes é bastante para mostrar e explicar tudo.” A multa condenatória, que é o caso em questão, é sanção penal, com previsão constitucional, não mais convertida em prisão. É uma dívida de valor executável na Vara da Fazenda Pública. Por ser obrigação pecuniária, qualquer interessado na sua extinção pode pagá-la, nada tendo a ver com o princípio da individualização da pena. A pena de prisão é que, por óbvio, só pode ser cumprida pelo condenado. Sendo a multa dívida de valor, o pagamento segue as regras da Lei de Execução Penal. Adotar posição diferente do que está previsto em lei é politizar uma questão, como fez o ministro Gilmar, que está sendo resolvida inclusive com participação de pessoas de reputação ilibada como o jurista Celso Antônio Bandeira de Melle e o ministro aposentado do STF Nelson Jobim, participantes da cotização petista. O resto é conversa para boi dormir. Como diz JB, merece o ostracismo. Mas esse é outro assunto.