Estava eu a assistir a um filme sobre o apóstolo Paulo. Na cena, ele conversava com Lucas, que cumpria uma de suas missões cristãs, fundamental para construção dos pilares onde hoje se assentam os postulados da Igreja. Lucas ouvia os ensinamentos de Paulo, que estava no cárcere, por ter sido condenado à morte por Nero, culpado de traição ao império romano, e Lucas, na penumbra da cela, transcrevia palavras de Paulo e as levava para a comunidade, que as multiplicava em cópias manuscritas e as enviava, como orientação sobre os ensinamento de Cristo, para as cidades distantes, ou para outros seguidores e perseguidos, como foi o caso de Timóteo. Nesses encontros, Paulo, dialogando com Lucas, já quando se aproximava a hora da execução, definiu em alegoria a vida. E disse-lhe: - Sabe a água que se tenta pegar com a mão. Pois bem. Mete-se a mão em concha e consegue-se pegar uma quantidade de água, mas a água escorre entre os dedos; é como a vida escorrendo pelas mãos. Paulo quis dizer a Lucas que a vida, como água apanhada no rio ou no mar, nos escapa pelos dedos das mãos, e acaba. E o que fica?

Tenho pensado. Estou num momento da vida em que os mais civilizados me chamam de idoso. Isso a dizer que já vivi algumas mãos dágua, que estão incessantemente escorrendo pelos dedos. E a resposta a essa pergunta é quase sempre um desafio à meditação. Poderia comodamente recorrer à citação de um filósofo, ou de um psicólogo. De nada adiantariam as suas respostas científicas. Creio que os poetas são mais preparados para enfrentar essa indagação metafísica. E insisto: o que fica?

Os poetas têm o poder da eternidade de nos dar todas as respostas, pois, assim, nos consolam e preenchem-nos com a lírica dos seus versos. Manuel Bandeira, no poema Profundamente, um dos seus e meus preferidos, fala sobre isso: Quando ontem adormeci / Na noite de São João / Havia alegria e rumor / Estrondo de bombas luzes de Bengala / Vozes cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas. / No meio da noite acordei / Não ouvi mais vozes nem risos (...) / - Estavam todos dormindo / Estavam todos deitados / Dormindo / Profundamente (...) Hoje não ouço as vozes daquele / tempo / Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Rosa / Onde estão todos eles? / - Estão todos dormindo (...) / Dormindo / Profundamente.

Nesse dormir profundo, resta-nos dar, para aqueles que dormem esse sono eterno, o recado para o silêncio de uma nova vida, libertada do barulho inquietante dos nossos sonhos telúricos.

No canto poético de Fernando Pessoa (em O Guardador de Rebanho), encontro esses versos que despem o ser cansado e humano, pois “quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Assim é e assim seja...” Quintana esse poeta dos pampas, sempre lírico, confessa: Todo um mundo submerso, / com suas vozes, seus passos, seus silêncios.

Para e penso, outra vez. Cadê o Chico e onde perscrutar o silêncio do Fred? Chico o conheci ainda bem jovem, empregado da Dimapi, uma empresa de distribuição de revistas. Depois, veio a banca da Praça de Fátima, onde sempre o encontrava para adquirir as minhas publicações que ele já sabia quais eram. Revista Piauí. Caros Amigos. E similares, como fascículos de filosofia, sociologia, literatura etc. Quando me aproximava, ele vinha a ter comigo. Naquele seu caminhar arrastado, camisa bem à vontade e um sorriso agradável. Separava algumas coisas que sabia que era da minha preferência. Eu sempre perguntava para alertá-lo dos novos tempos: - Já tens cartão? Não, respondia. Pagava, ou passava depois para pagar. Era o Chico. Agora submerso no silêncio. A água escorreu-lhe por todos dedos da mão.

Fred. Para mim, embora tivéssemos um convívio quando fomos advogados do Incra (Projeto Fundiário Imperatriz) e professor da Fesi, depois Uema, era apenas apenas Frederico. Ele e D. Edna. Os dois eternamente juntos. Não podiam se deixar. Edna silenciou primeiro. O tempo da separação foi insuportável. E agora, no silêncio eterno, voltaram a se reencontrar. Edna, com aquele seu jeito conciliador, um sorriso angelical à espreita, deve estar matando a saudade. Enfim, deve ela ter dito: - Lá vem meu Fred. Não suportou a distância.  E o recebeu com mil abraços de amor.

Esta crônica é um recado para esses dois amigos que partiram e que vivem o silêncio da eternidade. Só posso dizer, como acréscimo necessário a esse recado, este verso de Fernando Pessoa: “‘Stou sou e sonho saudade.”

* Membro da AML e AIL.