Oh!,passado, tu teimas em não passar. E não ficar quieto lá no teu cantinho, de saudade. Vez em quando insistes em voltar. Espreita-me e flagra-me nas minhas doces recordações. Minto, corrijo, não são bem recordações, são pedaços de vida, a desfilarem com intensa vontade de retornar. Digo a mim mesmo: - O dia amanheceu igual àquele, cheio de brilho, muito vento, vento forte, a desafiar-nos a todos nós para empinar um papagaio, de papel colorido, em leque ou borboleta. Desci à Belira, na busca desse pedaço de vida, que lá se encontra nas entranhas de sua rua, da sua gente gentil, das casas, dos quintais, das inquietas árvores, que fisgavam traiçoeiramente, sem piedade com o choro de nossa revolta, o rabo de algodão em cores de nossos papagaios. Hoje, papagaiamente, chamados de pipa. Um cruel desrespeito com aquela nossa brincadeira gostosa e repleta de sobressaltos lúdicos.
Oh!,passado, de ti não tenho saudades. Só ternura. Vives nas minhas entranhas, humanamente construídas aos pedaços, em retalhos. Somos feitos de pedaços. Cada minuto, cada hora, cada dia, cada semana, cada mês, cada ano, a vida vai sendo argamassada em pedaços. Pedaços de alegria, de felicidade, de luta (viver é lutar, cantou o poeta indianista), de encontros e de desencontros, de gente com gente, de amor, de humanismo e humanidade, de sonhos, de alguns pesadelos, se bem que necessários, como uma espécie de tormenta para ajustar o curso dessa laboriosa construção – a vida.
Não sei onde, ó querido passado, li uma poetisa, dessas que sabem dizer coisas líricas e sentimentos belos, como a nossa enternecedora Cora Coralina. Vê bem: “Sou feita de retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou.” E mais: “Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior. Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade…que me tornam mais pessoa, mais humano, mais completo.” E lá no finalzinho, com extrema poeticidade, fecha liricamente, com chave de ouro, como dizem os sonetistas: “E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de nós.”
Oh!,passado, tu que estás insistentemente sempre presente, guarda no teu cofre de fértil imaginação o nome dessa poetisa: Cris Pizzimenti.
Mas, tu, ó passado, fica certo, não me provoques nenhuma dor. Quem sente a dor do tempo e confessa, é o poeta lusitano Fernando Pessoa. Aqui e acolá, um pessimista lírico. É ele quem afirma: - Sinto o tempo com uma dor enorme (Livro do Desassossego). E ainda: “O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a minha alma me esfria e sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.”
É..., ó passado, ó tempo que foi, às vezes há um peso aterrador desses sentimentos de ausência, de solidão de nós mesmos. Não digo que não. Não quero contrariar o poeta dos heterônimos. Ele sabe o que diz. Mas não quero ser passadista. Busco apenas alguma coisa lá no passado. Uma explicação, por exemplo; uma reles justificativa, que esclareça um gesto desvairado, ou mesmo um sentimento explosivo de solidariedade. Jamais de rancor e de ódio. O meu passado tem muito do meu avô. Um carroceiro que moldou o meu caráter, porque me amou. Ó passado, peço-te eternas escusas: esse sentimento de ternura nunca será passado; está sempre presente em cada retalho de minha vida.
Pessoa cita uma frase, sem autoria, que lhe ficou no tempo: “Sentir é uma maçada.” Denomina essa expressão de plebeia. Não sei. Pode ser e pode não ser. Os retalhos da vida acrescentam em nós sentimentos, de grandes ou ínfimas dimensões. Senti-los nem sempre nos provoca aborrecimentos. Podem nos dar imensas alegres.
Zélia Leite, antes de ser a inesquecível amiga da Faculdade de Direito, da Rua do Sol, é filha do erudito professor Orlando Leite, ligou-me, muito feliz. Deu-me alegria. Não por fazer-me voltar ao passado, até porque o grande Machado de Assis já dissera que o passado é a melhor parte do presente. De imediato, fui à sala de aula. Melhor: à casa do prof. Orlando, onde íamos estudar e aproveitar para fisgar os seus vastos conhecimentos. Fazíamos uma tertúlia intelectual de amigos. Cada um falava, cada um dava a sua opinião, e todos ouviam. A prova era no dia seguinte. Todos preparados sob as bênçãos do professor e das espirituosas “molecagens” de Orlandinho. Que bom, hein Zélia?, Vitória Régia, Ericeira, Liciano, Barreto, Zé Carlos, Salim, Gerviz, Cartágenes... Ó passado, tudo isso não é passado. É vida.
* Membro da AML e AIL.
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