Para os velhos companheiros da turma da antiga Faculdade de Direito da Rua do Sol, apenas Liciano. Foi lá naquele casarão, a partir da prova do vestibular para o curso de Direito, que nos conhecemos. Vão-se alguns anos. Ainda me lembro da nossa expectativa, ao pé da escadaria, ao receber as notas que nos aprovavam ou reprovavam, gerando tristezas para alguns e muitas alegrias para outros. Era assim: só fazia a prova seguinte quem passava na anterior. A reprovação era ao vivo, no pé da escada. Reprovado, não subia. Fomos vencendo as etapas. No meio de toda essa turbulência, tu, caro amigo, ainda na sala para iniciar uma das provas (não sei se a de Português), recebeste uma notícia triste: a morte de um ente querido da tua família. Ainda assim, foste firme, não capitulaste, venceste a forte emoção daquela tragédia, cuja notícia te era trazida num momento inapropriado. Mas infelizmente necessário. Começávamos dali a superar as intempéries. Eram tantas. Difíceis de vencer. Mas precisávamos dar os passos iniciais. Quebrar os grilhões das dificuldades. A Faculdade de Direito ainda era caracterizada pelo elitismo, herança de um passado marcado pelo academicismo. Poucos aquinhoados conseguiam passar por aquela porta, embora larga mas estreita na seleção dos que disputavam vagas para ouvir as brilhantes aulas dos professores José Maria Ramos Martins, Orlando Leite, Antenor Bogéa, Nivaldo Macieira e tantos mestres inesquecíveis que nos ensinaram lições que nos possibilitaram alcançar com muita luta o Olímpio da carreira jurídica.

Meu caro Liciano, soube da tua partida no início da manhã desta terça-feira, dia 24. O mensageiro dessa dolorida notícia foi o estimado amigo Lourival Serejo, que compôs contigo a nossa Corte Maior de Justiça do Estado do Maranhão, onde tu exerceste o cargo máximo de presidente. Veja bem: tu, um homem de Mirador, de família pobre, que lutaste com denodo para palmilhar essa caminhada difícil de viver, e tudo superaste para alcançar o mais alto carga da magistratura maranhense. Volto ao tempo. E me vem à lembrança a inquietação do dia do trote. Sabíamos que haveria um momento em que os veteranos iriam tradicionalmente nos fazer de palhaços. Saímos de minissaia, fitinha na cabeça, pintados, e as mulheres vestidas de saco. Andamos com essas fantasias pelas ruas do centro da nossa cidade. E o momento culminante, Liciano, foi quando chegamos ao Tribunal de Justiça. Bem em frente, tu foste o encarregado de fazer o discurso de saudação. Ainda guardo comigo as fotos do trote, e, especificamente, desse ato de eloquência. Não me lembro mais das palavras do teu discurso. Mas uma certeza: o sonho de ser alguém, que se descortinava com a opacidade da dúvida, se tornou realidade. Tu ultrapassaste os umbrais solenes daquela Casa de Justiça. E honraste a toga.
Ainda voltando no tempo, a partir do trote, as aulas retornaram à normalidade. Cumpriu-se a tradição, assim como foi ter a cabeça raspada e usar a boina que nos identificávamos como acadêmicos de Direito. Uma pequena referência que nos enchia de vaidade. Pegávamos o bonde, com a boina na cabeça, e as pessoas nos inspecionando Continuamos estudando, e algumas vezes nos reuníamos em casas de excelentes companheiras de curso: Vitória Régia, onde tínhamos a certeza do suculento lanche de D. Vinólia, Gerviz, que morava na rua da Paz, quase em frente à casa do major Pereira, ou na casa de Zélia ou Orlandinho, para estudar Direito Financeiro e aproveitar os vastos conhecimentos do professor Orlando Leite, que sempre nos tirava de alguma enrascada. E tu, Liciano, quando comparecias, trazias contigo um caderno com todas as anotações dos assuntos que nós iríamos estudar. Depois de todas essas lutas, formamo-nos. Eu, no Rio, onde concluí o curso, e tu, com os demais companheiros, nesta nossa aprazível e encantadora cidade de São Luís, de tantas tradições.
Voltamos a nos encontrar. Com mais frequência em Imperatriz, onde tu já estavas na magistratura, sendo titular de uma das varas criminais, e eu, ganhando o pão de cada dia, no exercício da advocacia. Fizemos muitos júris. Às vezes, semana inteira em Açailândia, que, à época, era termo judiciário de Imperatriz. Eras um juiz dedicado. E digo isso não porque tu tenhas partida para o encontro com o Pai. Não. Não é por isso. Tu sabes bem disso, porque sempre entre nós houve uma relação de sinceridade. Na carreira jurídica de magistrado, fizeste uma longa e profícua caminhada, até quando chegaste ao ápice da presidência do Tribunal de Justiça do Maranhão. Ao assumir o cargo de presidente do TJMA, disseste que a primeira meta de tua gestão seria obedecer à Constituição e às leis. E, assim fizeste. Nem uma ínfima mácula na tua vida institucional de magistrado. Como deve ser o bom juiz, sempre foste uma pessoa reservada, longe das luzes da ribalta. O magistrado, desde os primórdios, quando o homem avocou para si o direito de julgar, retirando dos deuses essa nobre missão, não pode ser rico nem pobre, e deve ser seletivo com as suas amizades. Tu seguiste essa trilha de absoluta isenção.
Presto a ti, Liciano, meu velho companheiro dos bancos de faculdade e da magistratura, essa sentida homenagem, pedindo ao Pai que te receba entre os justos, e que teus familiares sejam consolados na certeza da ressurreição. Vá em Paz!

* Membro da AML e AIL.