E tudo porque Raduan Nassar foi escolhido, por unanimidade, para receber Prêmio Camões de 2016. Solenidade supimpa, realizada no Museu Lasar Segall, no dia 17 deste mês. O Prêmio Camões é considerado uma das maiores honrarias da literatura em língua portuguesa, concedido pelos governos do Brasil e Portugal. Uma espécie de Nobel da literatura dos que escrevem em língua portuguesa, contemplando o conjunto da obra do autor. Muitos grandes escritores ganharam, e muitos excelentes literatos não foram agraciados. Todo prêmio tem essa característica contraditória. Cito alguns que receberam essa láurea: Mia Couto, Miguel Torga, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Pepetela, José Saramago, Autran Dourado e João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Por último, Raduan Nassar. E aí se deu a esperada confusão. É de todos sabido que Nassar considera o impeachment um golpe. E já publicou suas ideias a respeito, fazendo-o de forma corajosa. Mas não num sentido de enfrentamento com a turma que se vem beneficiando com o novo regime. Não é bem isso. Raduan apenas manifesta as suas ideias, como também o fizeram os cineastas brasileiros, tendo à frente o diretor Marcelo Gomes, após a exibição do filme "Joaquim", no Festival de Berlim, que, em manifesto, denunciaram a ilegitimidade do governo brasileiro.

Trecho desse manifesto diz o seguinte: "Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil. Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde e trabalhistas foram duramente atingidos. Junto com todos os outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre sério risco de acabar. (...) Queremos garantir que toda e qualquer mudança ou aperfeiçoamento nas políticas públicas sejam amplamente debatidas com o conjunto do setor e com toda a sociedade."
Não sei o que o Jornal Nacional noticiou a respeito. Isso tanto do caso Raduan, como do manifesto dos cineastas brasileiros, lido no Festival de Berlim. Creio - e talvez não esteja sendo leviano - que não deu a mínima bola. Se deu, alguns reles segundos passageiros. E por que não sei o que o Jornal Nacional disse? Simples. Porque não vejo o JN há cerca de uns dez anos. E nem por isso deixei de estar bem informado. Não é nenhuma virtude ou desvirtude. É apenas a preocupação de não ser manipulado por William Bonner e sua corja. Evito não ter que encarar as falácias de um Alexandre Garcia e et caterva. Não dá mesmo. É dose.
O discurso de Raduan Nassar, no recebimento do prêmio, tinha apenas duas páginas. Portanto, um sábio discurso até no tamanho. Mas contundente, ao refletir, como romancista e contista dos bons que é, a sua obra, denominada pela crítica mais abalizada de uma "literatura de revolta". Raduan é um escritor da língua portuguesa respeitadíssimo. Entre suas obras, duas podem ser citadas como eternas: Lavoura arcaica e Um copo de cólera. Trata-se de um escritor que tem uma visão crítica da sociedade. Um intelectual, no sentido político da palavra, como foi Sartre.
Do seu discurso destaco algumas passagens sublinhadas: "Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua. (...) Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes. (...) Mesmo de exceção, o governo que está ai posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal. Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado 'Angorá'. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas.(...) É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções."
Em contraponto a esse discurso, por ter falado estrategicamente por último, veio a agressividade do ministro da Cultura, que não vale a pena citar o nome. Na verdade, ministro da grossura, ex-esquerdista ressentido, cujo pronunciamento foi estrepitosamente vaiado pelos presentes, chegando mesmo o poeta e professor da USP Augusto Massi a dizer-lhe, constrangido: "Acho que você não está à altura do evento." Raduan ficará para sempre na história da literatura brasileira. O citado ministro, um dia, ninguém dele se lembrará, nem pelas suas diatribes. Parodiando o poeta Massi, concluo que o ministro está à altura desses nebulosos e tristes momentos que estamos vivendo. Acabou, acabou o ministro, que talvez volte para Pernambuco, de onde fugiu para se eleger em São Paulo, terra que já produziu figuras como Ademar e Maluf, personagens que estão jogadas no esgoto da nossa história.