Aureliano Neto*
Esses dias, não sei por que cargas dágua, ando afetado por um mau humor, que beira os limites da rabugência. Não creio que seja um estado de espírito distímico, caracterizado pelo mal do humor. Quem sabe essa inadequação às coisas que giram em torno de mim e que paira no mundo, seja algo passageiro, portadora de uma efemeridade logo substituída pela curiosidade de perscrutar o cotidiano. Aquilo que seja simples, porém necessário para viver-se. Diz o adágio popular, e com certa razão, que Deus nos concedeu a memória, mas também nos dotou do esquecimento. E o tempo tem o poder da pressa no envelhecimento de todos nós. Nem a plástica, nem a pintura dos cabelos têm a força de eliminar a corrosão do tempo. O pior: como afirma Saramago, cada um de nós vive o seu deserto pessoal. Esse deserto é, para alguns, tão intenso que, às vezes, na despedida final, há mais coveiros que acompanhantes. Muitos, por uma série de fatores culturais e pessoais, optam pela solidão. Na França, a notícia que nos chega, com ufanismo, é que os casamentos diminuíram, os divórcios são mais constantes e prevalecem as uniões informais. Vive-se a transitoriedade a dois, ou melhor, de dois em um, parecendo aqueles sons do passado, ainda presentes, vendidos a preço popular. Não me repugnam esses dados. Fazem parte dos novos valores, ou contravalores. Não sei se trata de um novo modelo de felicidade, ou se apenas de felicidade artificializada pelos novos tempos. Mas estão aí encravados entre nós, a vicejarem.
Alguns pessimistas, dando vazão ao seu azedume em vista dessas coisas novas, dizem que, depois da história da maçã, o homem passou a comer o pão que diabo amassou. Como consequência natural, o paraíso aqui e acolá tem se transformado num inferno. Volto à acepção divina da vida, em respeito ao sentido bíblico da criação. Para aqueles que creem, a vida nos foi dada gratuitamente pelo Senhor. Porém a questão que nos atormenta não é o fato de recebermos gratuitamente a vida, é ter e viver a vida em toda a sua plenitude. E ainda mais conviver esse ato de viver com os demais. Dizem que certo capitalista norte-americano, ao denotar a sua visão liberal da economia e de vida, afirmou, com a veemência do lucro, que não há almoço de graça. Ou seja, generalizando, esse axioma: na vida nada é gratuito, nem mesmo, em algumas situações, o ato de amar. E, deve ser dito, embora em frase redundante, mas como reforço, nada há mais além do amor.
As minhas rabugices têm, de fato, como algo inarredável, me atormentado. Querem saber? Não suporto filas. De nenhuma natureza e em qualquer circunstância, mesmo que seja para fazer prato de comida em restaurante, ou em jantares especiais. A mim pouco interessa a situação, se solene ou trivial. Quando vejo a necessidade da fila, começo a ficar inquieto. Do mesmo modo, não suporto o falar alto, seja em local privado ou público, e ainda mais quando decorre de conversa deseducada e abusiva no celular. O trânsito tem sido para mim um tormento. Tenho pensado seriamente em evitá-lo. Mas como? Confesso que ainda não encontrei uma fórmula que me impossibilite de encarar o nosso conturbado trânsito seja o daqui, ou de qualquer outra cidade. Também não suporto ouvir ou ler besteiras. Aguentar um Alexandre Garcia, com aquele seu ar e trejeito falaciosos de ético, é dose. Por isso mesmo, para não ser vitima desses nossos falsos comunicadores, tenho fugido dos nossos jornais televisivos. Pouco os vejo. Basta ter que suportar as filas dos nossos bancos, que são cruciais e representam um ato de extrema crueldade sádica do nosso rico sistema financeiro. E olhe que muito tem sido feito para amenizar o sofrimento, até mesmo aplicação de dano moral, quando o consumidor bancário, atormenta-se por uma espera injustificável, por horas, no precário atendimento. Em que pesem esses cuidados protecionistas, o ato de impor sofrimento a quem precise dos serviços bancários permanece intocável. Talvez decorra do complexo de superioridade do sistema financeiro, fruto da cultura escravagista. Conclusão: podem tudo, até mesmo causar sofrimentos. Pois é. Nesse exato momento, estou aqui a tentar vencer minhas rabugices. Passa um estridente e perturbador carro de som. Desses que não dão espaço para a mínima possibilidade de uma reles e inconseqüente frase. Ah!, como esse barulho ensurdecedor, medieval, me atormenta. Se eu fosse administrador municipal, o meu primeiro ato seria a extinção do carro de som. Só funcionaria com ordem judicial favorável. De outro modo, o expurgo seria medida de profilaxia social.
Como essas rabugices me enlouquecem! Já foi dito e repito. Verdade, tenho que concordar com os pessimistas: depois do episódio da maçã, diga-se, muito mal explicado até os dias de hoje, o homem, que vivia no paraíso da paz celestial, passou a comer o pão que diabo amassou.
Para evitá-las, cada um busca o aconchego do seu deserto pessoal. Constrói casamatas de defesa, para não ser contaminado por esse letal vírus. Os moços vão se adaptando aos novos tempos. E os velhos? Machado de Assis, sempre aqui citado e relembrado, em Memorial de Aires, exorta, de forma conclusiva: "A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo." Mas a velhice física é uma coisa; é a outra face da moeda. O mais grave - o que torna esse ofício de viver cansativo - é a velhice mental, que impõe o fim antecipado em vida. Rebugices à parte, vamos vivendo no limite do possível, em que, muitas vezes, a proteção seja a imersão do rabugento em outro tormento, que é enterrar-se na solidão de um mundo particular. Mais uma vez, nem Freud explica.
aureliano_neto@zipmail.com.br
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