Meu pai, Florêncio, conhecido por Fulozinho, ou Flôzinho, tinha uma profunda religiosidade, sem ser um religioso fundamentalista, desses que andam por aí se apegando a regras bíblicas com uma literalidade doentia, como se a vida se resumisse apenas a uma crença positivista, descomprometida com outros valores. Pois bem. Meu pai seguia a tradição herdada da família, pois muito da sua formação religiosa recebera do meu avô, já muitas vezes aqui lembrado por mim, porque por ele fui criado até os seis ou sete anos de idade, até quando uma certa noite se despediu dos filhos e netos, indo ao encontro do seu destino, que é o de todos nós, pecadores ou não pecadores. Com alguma garantia para os primeiros, porquanto Cristo adorava os pecadores, a exemplo da recepção que fez ao filho pródigo, que, tendo rompido com os laços paternos, foi festivamente acolhido ao perceber o erro que cometera, então resolveu reconciliar-se e retornar para casa do Pai. Todos nós, queiramos ou não, temos muito do filho pródigo. E ai de nós se não tivermos, seremos iguais àquele que ficou no aconchego do lar, cumprindo com rigor essênico todas as regras, mas pecando pela inveja da recepção festiva dada àquele pecador arrependido.
Certa vez, num dos encontros do Movimento do Cursilho da Cristandade, perguntei ao Frei Humilde, por que Pedro, que negara, com insistência, Cristo no momento mais decisivo da sua história, fora perdoado e Judas, não? Frei Humilde, um sacerdote possuidor de uma fé e religiosidade profundas, respondeu-me, sem esboçar qualquer dúvida: - Porque Pedro se arrependeu; e Judas, não. Tive uma certeza: - Antes de sermos infalíveis, demonstrando vaidosamente que estamos salvos porque cremos e temos uma fé inabalável, devemos sempre, sempre mesmo, nos arrepender, até mesmo da nossa fé, que nem sempre é tão forte quanto imaginamos. Até porque não se tem fé, sente-se fé. Fé é, acima de tudo, um sentimento transcendental, que extrapola o sentido do racional. Recorro, como à destreza faz o trapezista, para não sofrer um acidente fatal, no momento em que salta de um lado para outro, ao meu guru Machado de Assis. E ele que nos diz que "Deus, para felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento." Tem alguma razão o Bruxo do Cosme Velho. O homem, no afã de se enganar, confunde fé com religião, e, o pior, religião com religiosidade. Religião tem amarras (não pode isso, não pode aquilo etc.), regras a serem seguidas, em que nossa liberdade de crer é limitada a cânones muitas vezes cruéis, despersonalizantes; religiosidade nos possibilita a crer amplamente, sem esses freios insanos e condicionantes ao exercício da fé, que exclui a camisa de força dos cânones que são impostos.
Volto ao meu pai, Florêncio. Se estivesse vivo, lendo esta crônica, ficaria muito feliz. Não pôde esperar. Certo dia, entoou o canto da despedida e, quando cheguei de viagem, num período de eleição, encontrei-o no acolhimento da família, tal como o filho pródigo, para a ida ao encontro do Pai. Não sei se teve tempo de arrepender-se. Mas tenho uma certeza, que pode ser traduzida em fé: o Pai ama os pecadores e odeia o pecado.
Nos albores das festas natalinas, meu pai, ao se aproximar o dia 25 de dezembro, preparava o presépio. Não sei se era alguma promessa. Nunca me foi dito. Só sei que, na véspera de Natal, chovesse ou fizesse sol, o presépio estava pronto, revestido de arari e murta, plantas ainda com os galhos e folhas verdes, e com as figuras simbólicas da nossa religiosidade. Com o passar do tempo, as folhas e galhos iam secando. O presépio, sem que representasse adoração a ídolo ou qualquer bobagem dessa natureza, era uma expressão da religiosidade do meu pai. Por meio do presépio, ele manifestava a sua homenagem e sua fé em Cristo. Um Cristo não tão bíblico, mas com os traços daquele que Fernando Pessoa, através de Alberto Caeiro, seu heterônimo, retrata em O Guardador de Rebanhos: "Num meio-dia de fim de primavera / Tive um sonho como uma fotografia / Vi Jesus Cristo descer à terra / Veio pela encosta de um monte / Tornado outra vez menino / A correr e a rolar-se pela erva / E a arrancar flores para as deitar fora / E a rir de modo a ouvir-se de longe. / Tinha fugido do céu. / Era nosso de mais para fingir / De segunda pessoa da trindade."
Esse Cristo pessoano, que fugira do céu e se encontrara com o poeta, era também o Cristo reverenciado pelo meu pai. Era de todos nós. Não tivera tempo de nos dizer que fazia parte da Santíssima Trindade. Ainda assim, fazíamos o sinal da cruz em sua reverência, prostrados no momento das nossas orações. Mesmo passados os festejos do Natal, aguardávamos a queimação das palhinhas. Chegara o dia. Não lembro qual a data de janeiro. Agora sei: dia 06 de janeiro. O ponto alto da reza era a ladainha, bem puxada, com alguns floreios do latim. Todos cantávamos: Adeus meu menino / Adeus meu amor / Até para o ano / Se nós vivos formos. Fogareiro em brasa. Palhinhas queimadas. O cheiro agradável da murta e do ariri secos era uma espécie de purificação. Em seguida, o chocolate quente no bule de esmalte e o bolo de roda. Todos, sequiosos pela iguaria, em torno da mesa. No dia seguinte, o presépio era desarmado. Cumpria-se o ato de fé, com muita religiosidade. A sociedade era outra. Os tempos também eram outros. Filho não matava mãe, e pai não matava filho. Amavam-se uns aos outros, sem o positivismo de uma fé, destituída de qualquer interesse, que não fosse amar e temer a Deus, respeitar ao próximo e honrar ao pai e a mãe. Isso, como diz o hino, com fé, esperança e amor.
Edição Nº 14903
Queimação de Palhinhas
Aureliano Neto
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