Quando a manhã se espreguiçava lenta, sem pressa de despertar para o mundo, todos dormiam o sono da quietude da preguiça do início do dia. Quando a vida parecia sem sentido, pois se despedia dela mais um amigo e do outro lado o poeta se vai cantando os seus versos em louvor aos mirantes da cidade velha e colonial, o homem sisudo vem à janela e olha interrogativamente para o nada. Quando tudo parecia certo, não era bem assim, a dúvida passa a ser uma certeza de que nada de certo acontecerá. Quando a mãe ralhava, com o filho, a professora ralhava com o aluno, o chefe ralhava com o subordinado, o médico ralhava com o paciente para que parasse de fumar e tomasse, com a exatidão matemática, o medicamento receitado, João do Vale, o poeta do povo, num dos versos de Minha história, diz, com a melancolia denunciadora, que "o professor raiou comigo, porque eu não quis estudar", para apontar o equívoco de que o "negócio não é bem João, é Mané, Pedro e Romão, que não puderam estudar, e nem sabem fazer baião". Eta, João poeta danado de quando fazia baião. Ainda bem que ficou.

Quando ralhar era passar carão, a vergonha ficava estampada na vermelhidão da maçã do rosto, e ouviam-se discos vinis na radiola - aquele móvel que ficava na sala, trabalhado de madeira de lei, escura ou amarelada, pesadão, difícil de ser arrastado, com dois alto-falantes, donde de se propagava para toda a casa o som do bolero ou do samba-canção. Quando mexido já foi maçaroba. Ah!, que vontade de comer! Vinha-se da festa, madrugada a dentro, e se encontrava um pouquinho de tudo sobre o fogão, ou um restinho de tudo na velha e carcomida geladeira, fazia-se a mistura para matar a fome da festa. Um restinho de feijão, aquela cebola frita que sobrou do bife, algum tantinho de lingüiça, mais um restinho de caldo, lançava-se tudo numa encardida panela, com um pouco de farinha e ovo frito. Não tinha fome madrugadora que resistisse. Mandava-se brasa, com a sofreguidão dos desvairados notívagos. Depois, quando tinha rede, dormia-se o sono dos justos, no seu balançar, até quando preguiçosamente a manhã despontava anunciada pelos primeiros raios do sol. Quando era dia de sol.
Quando maconha já foi diamba, ninguém dava a ela qualquer importância. Percebia-se a sua presença pelo inconfundível odor. Apregoava-se aos quatro cantos: - Alguém está fumando diamba aí. Mirava-se sem erro de errar na direção donde o vento denunciava o percurso daquele cheiro. Maconha virou moda. Diamba perdeu o status. É chique ser maconheiro. Diambeiro é vagabundo. É vício de desordeiro. De moleque de ponta de rua. Mas, quando maconha saiu de moda, assumiu a condição mais chique de baseado. A turma deixou de fumar maconha e passou a consumir um baseado. Assim, de grau em grau, dependendo da evolução, está machonado é o mesmo que está chapado. No fundo, no fundo, sem tirar, nem botar, cheio da erva que já fora considerada maldita.
Quando gay era maricas e mariposa apenas um inseto, o mundo era mais simples. Sim era sim, e não era não. Essas antíteses constituíam-se a dialética do viver. Chacrinha era intriga, uma intriga coletiva, grupal. A fofoca, mais eufêmica, veio depois. Por isso, e por esse tempo, reunia-se a família para fazer uma chapa. Pois, pois, quando chapa era fotografia, reunir a família para a chapa era uma tarefa hercúlea. Tinha sempre uma tia, que ficara pra titia, que precisava ir ao quarto pentear o cabelo para ficar mais bem na foto. Essa tia era aquela que mandava em tudo e que as crianças temiam. Estava sempre de cara amarrada. Precisava desamarrar a cara, para não destoar a chapa. Depois de chapa virar foto, que, por sua vez, tornou velho o retrato, veio a chapa do pulmão que assumiu a condição de exame de raios X, ficando restrita essa chapa aos hospitais.
Quando calçadeiras ajudavam a calçar, os sapatos eram bem apertadinhos, justos, entrando rente à pele. Sapatos pretos, sapatos marrons, sapatos de duas cores. Bem ao lado, em lugar destacado, a calçadeira, em modelo de osso, madeira, plástico ou ferro. A comum era de osso. Diz quem dela fez uso: não era fácil enfiar um Vulcabrás nos pés, com alguns benditos calos, sem a substancial ajuda da calçadeira. Estou à procura de uma calçadeira. Onde anda uma? Quem sabe onde pode ser encontrada, de preferência de osso.
Quando caixeiro não era caixa, mas vendedor-viajante. Vendedor que viajava o mundo. Ia de cidade em cidade. De bairro em bairro. De rua em rua. De casa em casa. - Represento essa grande fábrica de tecido, dizia, mostrando o pano, como documento que o identificava como vendedor de qualidade. Traziam consigo pequenas malas que continham amostras de todo o que vendiam. Venda a domicílio. Pagamento  em prestações, com cada operação anotada nos cadernos ou nas fichas ensebadas de uso. Hospedavam-se em hotéis baratos, de rodoviária, porque o dinheiro era curto. Vendiam de tudo. De grão em grão, iam enchendo o papo e atendendo a sua vasta clientela. O caixeiro-viajante, além de ter descoberto o Brasil, por ter peregrinado por todo o seu território, veio do tempo em chepa, com ch, que não era o mesmo que xepa, com x. Uma comida; a outra, carona. Quando o tempo muda tudo, a simplicidade solicita do caixeiro-viajante dá vez à agressividade da internet. Esse caixeiro que nos visita vinte e quatro ao dia, sem mostrar a qualidade do tecido que representa.