Aureliano Neto*
A sentença teve uma conclusão incisiva, destilando um quê de contundente revolta. Cada fim de frase era pontuada, com a força do vigor repetitivo, pela expressão exclamativa "pronto!". Uma decisão que deve ter enchido de alegria, se dela tomasse conhecimento, o casal mais famoso do Brasil: Daniela Mercury, cantora baiana e do Brasil inteiro, e a jornalista Malu Verçosa, sua amada companheira, promovida à esposa, com direito à capa de revista de circulação nacional. Um espanto para alguns, uma verdade para outros, um fato inquestionável para muitos. Uma sentença de nossos tempos, ressaltou um antropólogo sisudo, com a barba a cair-lhe pelos queixos, a retratar a pós-modernidade de uma nova cultura, Quase que me dá vontade sair de cena, por um momento, ainda que de forma infinitamente passageira, e fosse dançar um tango argentino. Mas fiquei por aqui, a apreciar a beleza dos movimentos sociais, que querem que a sociedade mude de um momento para outro. É possível..., é possível..., disse-me, pensativo, um amigo absorto, a espiar uma jovenzinha que levantava, exultante, a placa do protesto que, com a veemência da frase curta, condenava a famigerada e tão indesejada PEC 37. Mais absorto ficou esse amigo, quando um curioso jornalista, desses que ostentam máquina de fotografia e bolsa a tiracolo, sapecou-lhe a pergunta de praxe: Por que contra a PEC 37? E a jovem, com sapiência duvidosa, sem pestanejar um reles segundo, respondeu-lhe: - Sei lá... contra esses políticos corruptos que estão por aí há tanto tempo. E esse amigo redargüiu: - É, com certeza, desde Cabral. Por isso, acrescentou o amigo, que Ponte Preta fez o preconceituoso Samba do Crioulo Doido. Ponte Preta?, quis saber a jovem de cabelos soltos. A reposta se resumiu ao silêncio da ignorância.
Mas o relator da sentença elaborou profundos argumentos, para condenar o shopping. Sim. O caso que foi às barras da justiça se deu num shopping. Como dizia meu velho e querido avô: de onde menos se espera é que vem. Pois o tratamento discriminatório e homofóbico se deu aos olhares curiosos dos que estavam a entreter-se com as vitrinas das lojas. Conto a história, como me foi contada, sem acrescentar uma vírgula. Eram duas moças. Esclarece a nota: de jeitos rígidos e sorrisos econômicos. Creio que, por essas expressões, eram contidas e riam parcimoniosamente. Aproveitavam, e bem, a delícia do ar condicionado e a segurança que lhes proporcionava o ambiente. Como duas namoradas - e eram namoradas -, "extravasavam, sem pudores, as suas opções sexuais", ou seja: abraçavam-se, acariciam-se e trocavam alguns arrebatadores beijos. De repente, não mais que de repente, um segurança, desses formados em educação cívica dos tempos do regime militar, foi chamado para dar um basta nas cenas de amor explícito. "Pediu", dizem, que se retirassem, porquanto assim rezava o regulamento do shopping, que não admitia que casais do mesmo sexo tornassem público suas opções íntimas, embora hoje já não tão íntimas assim. A coisa não ficou por aí. Foi adiante.
As duas jovens amantes e namoradas buscaram a justiça e alegaram que foram vítimas de discriminação sexual. Um consumidor declarou ao juiz que elas estavam se abraçando e se beijando. Outra testemunha prestou o seu depoimento e disse peremptoriamente: - Eu também sou homossexual e igualmente estava de mãos dadas com a minha namorada. E o segurança insistia no seu libelo acusatório: - Vocês não poderiam ficar agarradas naquele local devido às normas do shopping. Enfim, formou-se a confusão entre o pode e o não pode. Coube ao juiz, como relator do colegiado, dar a decisão final, reformando a sentença dada pelo juiz de primeira instância, isto é, aquele que julga primeiro, e o fez de modo incisivo, relacionando a conduta das jovens homossexuais com os casais heterossexuais, e concluiu: "As pessoas são iguais. Pronto! As pessoas podem fazer tudo aquilo que não é proibido. Pronto! Manifestar amor e carinho não é proibido. Pronto!" E condenou o shopping no pagamento de três mil reais como reparação moral. Pronto!
Após o pronto condenatório, lembrei-me que os deputados da nossa combatida Câmara Alta, na Comissão de Direitos Humanos, aprovaram um PDC, que permite a psicólogos tratar homossexuais que desejam mudar a sua orientação sexual, revogando dispositivo de resolução do Conselho Federal de Psicologia. Logo, logo, esse PDC foi rotulado de cura gay. Nosso parlamento que já não anda muito bem das pernas com as ruas, tem a infelicidade de aprovar um projeto para curar uma "doença" que não é doença, porquanto se trata de opção pessoal de quem quer ter relacionamento homoafetivo. A nossa Maria Berenice Dias não aguentou o tal PDC e declarou que a sua finalidade é chancelar a mentira, uma vez que "está provado que a cura não existe, até porque não se trata de uma doença". As moças do shopping, que optaram entre si pela relação íntima, devem estar azucrinadas com essas idéias de curar o que não existe. Culpa de Feliciano, que confunde religião com o amor livre, além de impingir à naturalidade dos fatos preconceito de gênero. Desde Hipócrates, dizem que somos portadores de hormônios masculinos e femininos, que fazem com que sejamos um tanto homem e um tanto mulher e vice-versa. Às vezes, a dosagem escapa, razão pela qual a arguta Simone de Beauvoir afirmou com toda convicção: não se nasce mulher, torna-se mulher. Eis a verdade dos tempos atuais. Nem todo Feliciano tem olhos para ver, nem todo shopping tem regulamento para, sem risco, aplicar. Indo ao popular: todo cuidado é pouco!
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