Em 2006, estive na FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, evento cultural onde participam artistas da literatura brasileira e mundial. Paraty é uma cidade aprazível. Com ares de uma antiguidade respeitável. Na parte em que se realiza toda a programação da feira, tem suas ruas calçadas de pedras, que exigem de quem se desloca de um lugar para outro muito cuidado no caminhar. Mas é agradável participar dessa extraordinária feira, em que pessoas de quase todas as nacionalidades vão expor e discutir as suas produções literárias e a de quem esteja sendo homenageado. Este ano, estou de sobreaviso para dar uma chegada a Paraty e viver, mais uma vez, a rica experiência de sua festa literária.
Veio-me à lembrança o ano de 2006 da FLIP de Paraty, porque, até hoje, mantenho em minha biblioteca uns poemas de uma poetisa (ou, como ensina Houaiss e outros filólogos, que estudam a nossa linguística, “uma poeta”. Adotarei esta expressão.) de nome Rita Batata, que os publicou num pequeno e quase exíguo livrinho de papelão em forma de triângulo, que, abrindo-se, como se fosse um leque, os poemas aparecem em cada lado. A leitura é fácil, até porque são bem poucos os poemas. O primeiro deles, o de abertura, diz o seguinte: “Fui antagonista da / minha verdade, / Que tragédia!”. Uma espécie de haicai. Outros se seguiram. Destaco mais este: “Os sapatos / caminham / flutuando sobre a calçada. / O caminho está pra ser trilhado! / Meus sapatos estão grudados no chão / voando / pro futuro inesperado!” Esta é apenas uma amostragem do fazer poética de uma poeta que vive, para nós, o anonimato. E é ainda ela quem nos alerta: “Houve um desenlace / O ar fica suspenso / A morte nos faz parar / Engula o mundo / ou / vire comida dele.” Continuarei a guardar essa pequena produção artística da poeta Rita Batata, que deve ser autora de outras criações poéticas mais consistentes.
E por que essa lembrança dos poemas e poetas? Foi-me provocada pela escolha de Chico Buarque de Holanda, festejado artista brasileiro, que foi laureado com o Prêmio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa. Chico, além de ser um excepcional compositor, de extrema criatividade artística, é um grande poeta e excelente prosador. Budapeste é o seu romance de maior valor literário. E as letras de suas músicas são fenomenais. Sempre acompanhei Chico nessa sua trajetória de sucesso, desde a Banda, Olê, olá, Pedro Pedreiro, Januária, Carolina, Construção e tantas outras canções, como, ainda, deve ser ressaltada Gente Humilde – música do violonista Garoto e letra de Chico e Vinícius, donde se retira esses versos: “Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / Porque parece que acontece de repente / Como desejo de eu viver sem me notar.” E mais ainda esse lirismo de versos: “São casas simples, com cadeiras na calçada / E na fachada escrito em cima que é um lar / Pela varanda, flores tristes e baldias / Como a alegria de não ter onde encostar.”
De toda produção de Chico, a canção e letra que mais me encantou e me encanta até hoje é uma modinha. Uma música eterna. Conseguirá superar a voracidade do tempo. Nela se encontra toda a arte poética de Chico. Trata-se da modinha Até pensei. Entoada por Nana Caymmi e Chico, o mundo se transforma numa utopia, que se realiza através da força poética dos criativos versos de Chico, como se nele estivéssemos vivenciando o mundo não só utópico, mas sonhado num sonho de todas as possiblidades de nossas realizações, até porque, como canta o poeta, a felicidade, espreitada na noite escura, é tão vizinha.
Em Até pensei, Chico começa descrevendo o ambiente do sonho, do bosque, do muro alto, do balão que caía, da modinha, da felicidade tão vizinha, e esse seu canto é como se fosse uma brisa acariciando a nossa eterna vontade de amar. Caminhemos com Chico: “Junto à minha rua havia um bosque / Que um muro alto proibia / Lá todo balão caía / Toda maçã nascia / E o dono do bosque nem via / do lado de lá tanta aventura / E eu espreitar na noite escura / A dedilhar essa modinha / A felicidade morava tão vizinha / Que, de todo / Até pensei que fosse minha.” E Chico vai em frente nessa fantasia de todo pobre de carinho, como a criar um mundo em que a sua amada, com os olhos claros como o dia, pudesse vê-lo, mas nem o via. Por isso, o poeta diz “até pensei que fosses minha, em que pese padecer de toda a dor da vida. Aí nesse cantar, todo o lirismo de Chico, o maior poeta da música brasileira.
Quem sabe, lá atrás, numa premonição, a poeta Cecília Meireles, num dos seus belos poemas, Motivo, nos primeiros versos já exaltava o sentido do seu canto: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste / Sou poeta (...) Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / - mas nada.” Como Cecília Meireles, Chico e Rita Batata, da FLIP, de 2006, cantam porque o instante existe e são, acima de tudo, poetas.
* Membro da AML e AIL.
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