Nada a ver com o cogito ergo sum. Ou, ainda, na linha do pensamento existencialista, com o existo, logo penso, uma vez que esta concepção partia da premissa de que a "existência precede a essência". Ora, não se está aqui a fazer filosofia. Longe deste pobre escriba cometer tal veleidade (porquanto de todo analfabeto nessa área do saber), embora tenha o topete de se aventurar na leitura de alguns textos filosóficos. Mas o que aqui se quer é ter uma conversa trivial sobre o ser humano e as suas idiossincrasias. Filosofia mesmo é pra Sartre, Decartes, Heideger, Hegel e outros luminares que pensaram o homem, a sua vida, o sentido da vida, a sua existência. Como exemplo desses estudos que atravessaram o tempo, refiro-me a Decartes que estabeleceu uma concepção dualista do homem, subdividindo em corpo, dentro do qual existe o intelecto. Já Sartre, o filósofo existencialista, dizia que somos produtos de nossas escolhas, afirmando que "o homem está condenado a ser livre... pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz". No frigir dos ovos, fico com Sócrates, condenado a tomar cicuta, defendeu-se no curso do julgamento fazendo uso da máxima consagrada até os dias de hoje: só sei que nada sei, que alguns dizem que sequer ele o disse. Por via das dúvidas, fica então o dito pelo não dito. Acredito que no fundo Sócrates está certo.
Meu avô, aqui sempre lembrado, afirmava com veemência oracular que eu seria doutor. Dizia ele lá da sua sapiência cultivada no cotidiano da vida árdua: - Meu filho vai estudar pra ser doutor. E, pior, propagava isso aos quatro cantos, impondo uma responsabilidade quando da realização das provas no grupo escolar, exigência para passar de ano. Na época, doutor era qualquer vivente que conseguia se formar em médico ou advogado. Pronto!, formou-se, já que não havia essa figura moderna de colar grau, era logo chamado doutor. O dentista formado, não o prático, que havia aos montes, era também doutor. Ah!, ia esquecendo, o engenheiro, também. Faço uma pequena e necessária ressalva, para não ferir suscetibilidades: naqueles tempos idos, não tão distantes, pois não se está a falar de velhice, no corriqueiro, o odontólogo era chamado no popular de dentista, sem que essa denominação tivesse algum sentido pejorativo. Agora, respeitados os estudos científicos dos novos tempos, são rotulados, com muita razão, de odontólogo e ainda mais a especialidade. Faço essa emenda para melhorar o soneto.
Mas "o penso, logo sou" decorreu de uma leitura que fiz de uma página perdida num livrinho desses de quase nenhuma importância. Mania de leitura. Peguei o livro e abri ao léu numa página qualquer. Lá encontrei a seguinte história, sob o título "Bata Essa." Assim mesmo, nesse tom prosaico. Dizia: "Um rapaz trabalhava como mensageiro numa agência de publicidade. Um dia disse ao seu gerente: 'Estou saindo. Vou ser baterista.' O gerente disse: 'Eu não sabia que você tocava bateria.' Ele respondeu: 'Não toco, mas vou tocar.' Poucos anos depois aquele jovem tocava com Eric Clapton e Jack Bruce numa banda que se chamava Cream, e o nome do jovem era Ginger Baker. Tornou-se o que queria ser antes de saber que era capaz de fazê-lo." Moral da história: o nosso personagem tinha uma meta, embora não pensada. Pensou e logo resolveu ser. Todos nós temos a liberdade de tomar decisões ou de não tomá-las, pois, como afirma Sartre, estamos condenados a ser livres, e ter a responsabilidade pelas nossas escolhas. Nós temos a liberdade de escolher os nossos caminhos. Floridos ou espinhosos. Alegres ou não tão alegres. Tudo isso a exigir um compromisso ativo de nossa vontade, aliada ao de fazer escolhas que possam representar valores essenciais da vida, sustentados no plano ético da convivência com o outro, uma vez que o inferno nem sempre são os outros. E, a depender de nossas escolhas, somos nós mesmos.
Meu avô, que me pensava doutor, tinha nessa premonição não realizada, na essência técnica de ser doutor, já que apenas cheguei a advogado, professor e magistrado, não me doutorando em coisa alguma, tinha a caridosa intenção de ver o neto amado vivendo uma vida que não era a que ele, com dificuldade, vivia. Com ajuda dele, conseguimos atravessar o Rubicão. Não para conquistar Roma ou o mundo, como o fez César, na sua ânsia do poder imperial, que depois lhe valeu a vida. Porém a travessia do Rubicão, no dizer de Tancredo Neves, não foi para pescar, mas para poder viver a liberdade como elemento essencial da dignidade de ser livre e aprender lições que a vida nos impõe. Sem existencialismo, nem a dicotomia cartesiana do corpo e da mente, a vida nos impõe o pragmatismo do pensar e do ser, numa dualidade que se completam a depender da nossa liberdade de decisões, acertadas ou não acertadas, mas decisões, que nos fazem existir como ser em sua essência. Fernando Pessoa, contaminado pela ambivalência pessimista, estando entre a existência e essência, não concorda poeticamente com essa travessia: "Nada sou, nada posso, nada sigo / Trago por ilusão, meu ser comigo. / Não compreendo compreender, nem sei / Se hei de ser, sendo nada, o que serei." Ora, ó meu poeta preferido, ouso insurgir-me contra esse desencanto, porque sempre seremos o que seremos como ser. Esse é o pesado tributo que pagamos por sermos livres e responsáveis por nossas escolhas.