Estamos vivendo o século XXI, que ainda não se libertou das graves doenças do século XX, geradoras de tantas desigualdades. Boaventura de Sousa Santos, pensador renomado e sociólogo de prestígio universal, em seu livro Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade, 14. ed., 2013, faz a seguinte advertência: “O século XX ficará na história (ou nas histórias) como um século infeliz. Alimentado e treinado pelo pai e pela mãe, o andrógino século XIX, para ser um século-prodígio revelou-se um jovem frágil, dado às maleitas e aos azares. Aos catorze anos teve uma doença grave que tal como a tuberculose e a sífilis de então, demorou a curar e deixou fortíssima recaída que o privou de gozar a pujança da própria meia-idade. Apesar de dado por clinicamente curado seis anos depois, tem tido desde então uma saúde precária e muitos temem uma terceira recaída, certamente mortal.” No primeiro capítulo (Cinco desafios à imaginação sociológica), Boaventura Santos adverte que, nos países centrais, aprofundou-se a crise do Estado-Providência, agravando-se as desigualdades sociais e os processos de exclusão social. E acrescenta: 30% dos americanos (do Norte) estão excluídos de qualquer esquema de segurança social, criando-se um terceiro mundo no interior dessas sociedades tidas como ricas. Nos países periféricos, como o Brasil, vêm se processando o agravamento das condições sociais, que sempre foram precárias, mas o sendo de forma brutal. Tanto que, diz Boaventura, na década de oitenta morreram de fome na África mais pessoas que em todas as décadas anteriores do século. Tem-se, em vão, clamado para ser substituída esta atual ordem econômica por uma outra que valorize humanisticamente o pessoa humana.
Ainda estou fazendo a leitura, de forma meditada, dessa obra sociológica de Boaventura Santos. Recomenda-a para aqueles que se interessam por essa espécie de literatura que foge da rotina das mensagens equivocadas hoje muito utilizadas como verdade nas mídias sociais, onde cada emissor assume a condição de catedrático de insultos, ou à direita ou à esquerda.
Historicamente, vão-se mais de trinta anos da Constituição de 1988, que nasceu de um pacto de todos os segmentos ativos da sociedade brasileira. Em nossa Carta Republicana, foram concedidos ao Supremo Tribunal Federal poderes que lhe garantem assegurar a guarda dos nossos direitos fundamentais, como sustentação da democracia e do Estado de direito, mesmo porque, como acentua Oscar Vilhena Vieira, na sua recente obra jurídica A batalha dos poderes, e amparado na lição de outros importantes publicistas, as constituições não se salvam sozinhas. É preciso que a sociedade tenha essa consciência. Os direitos fundamentais devem ser respeitados e garantidos tanto pelos cidadãos como por todas as instituições.
E é o mesmo constitucionalista Oscar Vilhena que traça uma concepção finalística da Carta Política de um estado democrático: “As constituições, mais do que um conjunto de normas superiores, são dispositivos que aspiram habilitar a democracia, regular o exercício do poder e estabelecer parâmetros de justiça que devem pautar a relação entre as pessoas e entre os cidadãos e o Estado. Nesse sentido, são mecanismos pelos quais nos comprometemos a enfrentar nossos problemas e coordenar nossos conflitos de forma pacífica e democrática.”
Vale ressaltar: não existe democracia pela metade. Ou é ou não é. Nem presidente, ainda que no sistema presidencialista, que possa tudo. Pode muito, como certa vez ouvi do grande democrata Paulo Brossard, em passagem por Imperatriz. Não sei se a nova geração ainda se lembra desse bravo lutador pelas liberdades, que chegou a ministro do STF, sem vender a sua alma para o diabo. Ele dizia: o presidente pode muito, mas não pode tudo. Onde estão os limites? Na Constituição. Assim, não se pode considerar um governo, seja no executivo federal, estadual ou municipal, que, acintosamente e em evidente desrespeito à Constituição – a Lei Maior, a Lei das Leis – pregue ou silencie quando ocorre a violência contra direitos fundamentais de brasileiros. Do mesmo modo, quando defende a matança ou a tortura e torturadores. Essa conduta ou esse discurso, venha de qualquer liderança, mesmo que episódica, é hostil aos valores constitucionais, cujo documento foi construído através da participação de muitos brasileiros, que foram às ruas lutar pela democracia, quando o regime ditatorial civil-militar caminhava para o seu estertor.
Algumas coisas devem ficar bem claras. Supremo Tribunal Federal, embora o seu regimento interno permita, não é delegacia. A sua função é muito mais nobre que isso. A Câmara Federal e o Senado da República – os seus componentes, deputados e senadores – não são órgãos de vassalagem do presidente. Representam interesses do povo que os elegeu, uma vez que a Constituição é que fixa o princípio de que todo poder emana do povo. E o presidente não é o ditador eleito. Portanto, não pode cometer o crime de responsabilidade, louvando a tortura e torturadores, e ainda defendendo o uso da violência armada. O Brasil, para ser pátria amada, não pode “cantar de galinha”, como afirma o físico e professor emérito da Unicamp, Rogério Cezar de Cerqueira Leite, no texto Brasil ‘cantando de galinha’, publicado na FS, edição de 14 de abril, p. A3. Meditemos sensatamente sobre isso.
* Membro da AML e AIL.
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