Aureliano Neto*
No Livro do Desassossego, Fernando Pessoa - e, reafirme-se, é sempre bom evocar esse poeta da metafísica -, ao falar sobre o tempo, diz que sente o tempo como uma dor enorme. Esse sentimento é reforçado quando afirma que as coisas boas da vida quando as abandona e pensa, com intensa sensibilidade, que nunca mais as verá e as terá, doem-lhe metafisicamente. Faz, em seguida, esta pungente exortação: "- O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter!" E salta Pessoa para o extremo do sentir poético: "- Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas." Em outro momento, afirma: "Só o sonho vê com o olhar." É certo. Pensar o passado, sem transformar as emoções em mera nostalgia, é um desafio a nós mesmos. Alguns, materialistas de si mesmos, apregoam do alto da sua insensibilidade: - O que passou, passou. E acentuam: - Vivo do presente para frente. O passado é um nada. Não existe. Mas, em que pese a fuga da metafísica de Pessoa, as lembranças teimam em nos perseguir. De fato, não há como fugir dessa inexorável sentença: só o sonho vê com olhar. As lembranças são os sonhos que nos faz olhar para dentro de nós mesmos. Em cada um nós, há uma noite que nos possibilita esse olhar interior.
Pois bem. Num desses dias, saía pelas ruas de São Paulo, bem no início do dia, ainda escuro, com a iluminação pública a nos mostrar o itinerário. Íamos - eu, Jacirema, Bernadete e Thiago: mulher e filhos - a uma igreja nas proximidades de onde mantemos um apartamento. Nosso destino: participar de uma romaria para o santuário de Nossa Senhora Aparecida. Esse é apenas um detalhe do trajeto. O que me chamou a atenção foi ter passado por uma padaria, que já estava com as suas portas escancaradas, atendendo a uma minúscula clientela. Era um dia de sábado. São Paulo para um pouco pela metade, reduzindo a marcha da locomotiva que dizem que é. Senti no ar o cheiro do pão quente - aquele pão quentinho das madrugadas de um tempo tão distante, mas que se fez tão perto. As minhas emoções voltaram ao passado, que, como Fernando Pessoa, nunca mais o verei e o terei por perto. É verdade: é impossível refazer o passado. Doeu-me metafisicamente aquele cheiro de pão quentinho, gostoso, que invadiu, sem pedir licença, a pequenina fresta do vidro do carro, para fazer-me voltar ao tempo da minha adolescência. Não só senti o cheiro do pão quente que exalava da padaria, como saboreei o gostinho de sua massa e da crosta queimada de sua cobertura. Naquela madrugada, chorei o choro de um mendigo, vertendo as lágrimas do meu sentimento para o interior de mim mesmo.
Fui rapidamente ao passado, em dois momentos. O primeiro deles, ainda adolescente, saía a nossa patota - grupo de amigos da redondeza para as festinhas nos bairros da cidade. Estávamos a dar os passos iniciais de romper as madrugadas. Ao retornarmos, fazíamos uma parada obrigatória na padaria do seu João Pedro, para saborearmos o pão quentinho que era retirado nas primeiras fornadas. O forno - não há nem necessidade que se diga - era daqueles antigos, em que os pães postos enfileirados numa longa tábua e feito sobre eles dois traços longitudinais com uma faquinha, eram acondicionados no seu interior. Cozinhados pelo calor intenso do fogo produzido por achas de lenha, eram retirados e colocados num cesto de vime. Todo preparo da massa do pão era feito durante a noite. Na madrugada para amanhecer, iniciava-se a etapa final de cozer o pão, ora mais tostado, ora menos. De longe, quando vínhamos das nossas noitadas, com a fome natural da juventude, sentíamos o cheiro do pão, que emanava da padaria. Comprávamos o bastante e ficávamos a saborear na esquina, para, já amanhecendo, recolhermo-nos para os sonhos a serem sonhados em nossas redes.
Em Imperatriz, ao chegar, pelos idos de 1975, o pão quentinho não era comprado na madrugada. Era de véspera. A Paratodos, poucos anos depois, ainda não situada na Bernardo Sayão, com uma vasta clientela, ficava repleta de clientes, que aguardavam os pães saírem quentinhos do forno, ainda aquecido por lenha. Todos, de forma ordenada e civilizada, aguardavam pacientemente para ser atendidos. O pão era embalado em saco de papel, que não lhe tirava a consistência e o sabor, servindo para o consumo do mesmo dia e do dia seguinte. Como se estivesse a cumprir um ritual, diariamente realizava a inadiável missão de ir até a esquina da Coroliano Milhomem satisfazer-me com o pão quentinho da Paratodos. Era uma festa, em que se tinha o prazer de encontrar os amigos ou conhecidos para trocar um pouco de conversa, ou mesmo leves e passageiros cumprimentos.
Ah!, exclama Fernando Pessoa, "o tempo! o passado!". O cheiro do pão quentinho na distante São Paulo fez evocar emoções que ficaram lá bem atrás. Aquilo que foi e nunca mais será. Talvez por isso o bardo português, em suas reflexões, afirme peremptoriamente sentir o tempo como uma dor enorme. Mas, sem nostalgia, ainda assim, o cheiro do pão quentinho, embora nos faça chorar lágrimas da dor metafisicamente sentida, é possível fazer retornar ao presente para, fechando todas as portas desse sentimento, poder-se caminhar para frente na busca de outras vivências. Enfim, em que pesem todos os nossos sentimentos, o sol continuará a nascer, a chuva não deixará de chover e o vento continuará a nos trazer essas lembranças que se introduzem no nosso íntimo para evocar as emoções construídas no interior de todos nós, quer queiramos ou não. Sonhar é uma imposição vital, sobretudo porque evita que tenhamos o pesadelo de não ter sonho algum. O fundamental é que o sonho e a realidade se interpenetrem, numa sinergia que nos possibilite viver a metafísica do amor, ainda que sozinho na noite íntima de cada um de nós.
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